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Pretos que voam: projeto dá bolsas para jovens seguirem carreira na aviação

Paula Rodrigues

de Ecoa, em São Paulo (SP)

04/06/2021 06h00

A primeira paixão da vida de Kênia Aquino foi o céu. Ainda menina, quando morava na casa dos pais em Porto Alegre (RS), Kênia passava os dias de cabeça levantada, olhando para cima para ver cada movimento das nuvens, cada escurecida ou clareada nos tons de azul que mudavam com o clima. Até nas tempestades, o céu, ao invés de deixá-la com medo, a encantava. Quando completou 16 anos, pela primeira vez teve a chance de estar mais próxima dele. Entrou em um avião pela primeira vez e entendeu que a vida com os pés no chão era boa, mas o que a fazia feliz mesmo era voar. Virou comissária de bordo assim.

"Eu tive a oportunidade de viajar com a minha mãe e a minha irmã para o Rio Grande do Norte, e me apaixonei completamente pelo outro lado do céu. Eu via as nuvens de cima para baixo. Isso foi um divisor de águas para mim porque eu queria ter aquela visão todos os dias. Foi mágico, sabe? Dali eu decidi que queria trabalhar com aquilo. Nem sabia como, mas queria", conta.

Nos 13 anos de profissão, o céu não decepcionou o encanto que que despertou na Kênia criança. De quebra, ela ainda pôde visitar, mesmo que rapidamente, 11 países. Só uma coisa começou a incomodá-la com o tempo: a quantidade de pessoas negras a bordo.

Negros no alto

"Muitas vezes eu fui a única negra do avião. Não tinha nenhum outro comissário, nem piloto ou passageiro. Será que as pessoas que entram a bordo não percebem que, às vezes, em duzentos tripulantes, nenhum é negro? Ou que só um, dois, três, quatro passageiros são negros?"

Na tentativa de reverter a realidade que encontrou na aviação civil, Kênia criou um perfil no Instagram. A página chamada Voo Negro (@voonegro), no seu começo em 2015, tinha o propósito de publicar imagens e histórias de pessoas negras que eram tripulantes. Com o tempo, porém, Kênia entendeu que, mais do que mostrar que negros e negras, apesar de poucos, também voam, o perfil poderia servir para inspirar e ajudar a incluir essas pessoas nas tripulações.

E a melhor forma que encontrou de fazer isso foi coletivamente. Se uniu com Laiara Amorim, também comissária de voo que é dona da Voe Como Uma Garota Negra, e juntas iniciaram o coletivo Quilombo Aéreo.

"Nosso objetivo é fortalecer quem está dentro, unir mesmo, pegar na mão e dizer que a gente sabe que não é fácil sofrer racismo aqui nesse ambiente, como não é em nenhum outro, mas nós estamos juntos. E convidar pessoas que não estão ainda na aviação civil para que elas façam parte e entendam que aqui dentro vai ter gente que vai está esperando por elas", diz.

Pretos que voam - Divulgação - Divulgação
1600 jovens se inscreveram na primeira edição do projeto "Pretos que Voam"
Imagem: Divulgação

"Com quantos pretos se muda a cor do céu?"

Foi justamente para tentar trazer mais pessoas negras para a área que, no final de 2020, o Quilombo Aéreo se inscreveu para um edital da Benfeitoria, plataforma online de financiamento coletivo para projetos sociais, culturais, econômicos e ambientais. Para serem contempladas, precisavam conseguir R$ 90 mil em doações voluntárias.

15 projetos que conseguiram bater a meta foram selecionados para receber o dobro do valor para investir em algum projeto de impacto. O Quilombo Urbano foi um deles com o "Pretos que Voam", iniciativa que vai pagar o valor completo do curso de aviação, provas na ANAC (Agência de Aviação Civil), um curso de língua estrangeira e os uniformes para onze jovens negros que não teriam condições financeiras para isso.

Essa primeira edição do Pretos que Voam foi toda concentrada em Porto Alegre e teve cerca de 1600 inscritos. Além da bolsa integral, o Quilombo Aéreo pretende dar monitorias para os selecionados. A ideia é conseguir dar suporte para que os jovens consigam se adaptar melhor ao ambiente que encontrarão na aviação civil.

Para Kênia, é importante tentar espalhar a informação de que trabalhar nessa área é uma opção, já que em sua visão, muitas pessoas negras não chegam nem a cogitar virar tripulantes porque não é comum ver negros e negras como pilotos ou comissários. Por isso, um dos próximos passos do Quilombo Aéreo é entrar nas escolas. Assim que a pandemia passar, elas pretendem começar a levar o projeto para as salas de aula para mostrar que essa é uma possibilidade de trabalho.

"Uma pergunta que a gente se faz, tanto que está em uma das camisetas do projeto é: 'Quantos pretos são necessários para mudar a cor do céu?' É um trocadilho, uma frase de impacto para fazer as pessoas realmente refletirem. Estima-se que somos apenas 5% na aviação civil, então quando é que a gente vai conseguir mudar esses números?"