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Restaurante luta contra "deserto alimentar" e leva orgânicos para periferia

Isabella Garcia

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

20/10/2020 04h00

Em outubro de 2019, o Campo Limpo ganhou um restaurante de comidas saudáveis, o "Organicamente Rango". A proposta é levar principalmente aos moradores das periferias da região, uma comida gostosa, sem frescura e que utiliza alimentos orgânicos. O cardápio oferece opções para os vegetarianos e também para quem come carne. Os pratos que mais se destacam são o Bobó de Shimeji e o Nhoque de Mandioca.

Tia Nice, a Chef do restaurante, é uma figura muito importante dentro e fora da cozinha. Ela trabalhou como empregada doméstica para educar seus quatro filhos. Depois de concluir essa missão, se mudou para Ilha Comprida, no litoral, montou um bar e trabalhou lá durante sete anos. Em 2016, vendeu o estabelecimento e voltou a São Paulo para construir e se preparar para o seu sonho.

Tia Nice é chef do Organicamente Rango - Divulgação - Divulgação
Tia Nice é chef do Organicamente Rango
Imagem: Divulgação

"A gastronomia é um artesanato! Você tem uma série de alimentos crus e transforma em uma mesa cheia comidas gostosas e bonitas. Todo dia é uma coisa diferente. A cada bom dia eu recebo, sei o que a pessoa quer, como vou preparar aquele prato e isso é muito satisfatório" conta Tia Nice.

O menu contém opções como o baião de dois, o tradicional e vegetariano, moqueca de peixe, moqueca vegetariana, charutinho de legumes, lasanha de berinjela, o Bobó de Shimeji e o Nhoque de Mandioca. Todas essas opções, custam R$ 20 e servem uma pessoa.

Junto ao restaurante foi inaugurado o primeiro armazém de comida orgânica da periferia de São Paulo. O empório vende ingredientes da época e os fornecedores são produtores de agricultura familiar que plantam de maneira agroecológica, também em regiões periféricas.

O espaço faz parte da Agência Solano Trindade, um empreendimento cultural extremamente importante para as periferias da zona sul. Eles criam meios que possibilitam a autoprodução em ações culturais para os moradores daquela região. Existem várias formas de proporcionar isso. Pode ser por exemplo, uma ajuda financeira a um poeta que está buscando recursos para a impressão do seu livro, disponibilizar formação para as pessoas que querem empreender, oferecer um curso de gastronomia ou até mesmo um auxílio em dinheiro que ajude esse microempreendedor a fazer um investimento. Ao longo do ano desenvolvem várias ações que giram em prol de um objetivo: olhar a economia criativa desses arredores.

"Acreditamos muito na economia solidária que é uma prática que foca nas pessoas e o dinheiro é consequência dessas conexões. Aqui é como se fosse o Sebrae da quebrada, a gente prepara esses empreendimentos. Temos muita sorte de ter nascido aqui, pois hoje vemos que a cultura diminui a violência. Por isso fazemos de tudo pra chegar na vida do jovem antes do fuzil e a responsabilidade de cuidar da biqueira" conta Thiago Vinicius uns dos fundadores da agência, articulador cultural e filho da Tia Nice.

O local é uma casa colorida, repleta de grafites, fotografias de suas ações, imagens/gravuras de personalidades que admiram, como Mano Brown e Marielle Franco e quadros que trazem referência a cultura afro, principalmente a parte religiosa. Nesse espaço funciona um coworking com salas de reunião e espaço para as pessoas trabalharem. O restaurante fica na parte dos fundos.

Nas periferias é muito comum encontrar os "Desertos alimentares". Esse é o termo utilizado para definir locais onde o acesso a produtos in natura ou minimamente processados é difícil. A pessoa precisa andar muito para encontrar algo assim. Por isso, Thiago faz um alerta ao uso do termo "comida de verdade" para se referir ao restaurante da sua mãe. Outra questão levantada é que muitas vezes os moradores dessas regiões encontram dificuldades para ter acesso a comida, então para alguém que não tem o privilégio da escolha, um miojo representa uma refeição completa.

Antes de idealizar o restaurante, foi feita uma grande pesquisa histórica sobre seus antepassados e como viviam. O articulador cultural explica que antigamente era muito comum as pessoas periféricas terem uma dieta quase que vegetariana, pois o acesso a carne era restrito. Essa questão abriu a mente para mostrar que antes de um alimento ser saudável, ele pode e deve ser muito saboroso.

As comunidades vivem uma grande explosão dos fast food. Pensando em um pequeno trecho entre Campo Limpo e Capão Redondo, é possível contar pelo menos cinco restaurantes dessas redes. "Quando a pessoa desce do ônibus e decide comprar uma salada, existem tantos empecilhos no caminho, que ela opta por baixar um aplicativo de cupons de desconto e comprar com dez reais um lanche e um refrigerante. Não posso falar que esse valor é muito barato pois nessa região encontramos muitas pessoas com subnutrição pois não tem o que comer. Mas ao mesmo tempo que isso acontece, você encontra gente que tem muito acesso a comida e acaba tendo um quadro de obesidade. Isso é muito sério! Na quebrada também é muito forte a questão dos salgadinhos industrializados e os feitos pelas 'tias', que deixam a alimentação bastante em cheque" analisa Thiago.

Henrique Heder é vegetariano e morador da região do Campo Limpo. Ele conta que sempre teve dificuldades de encontrar alimentos saudáveis na periferia e no "Organicamente Rango" ele encontra muita diversidade e ainda tem a opção de comprar os ingredientes orgânicos e saudáveis no armazém. "A cozinha da Tia Nice é um ponto forte, tanto por ela ser uma mulher líder da região, como pela qualidade do alimento que ela oferece. Esse é um foco de trabalho super importante nessa onda de industrialização que afetou a qualidade da alimentação. Tudo isso é causado por esses alimentos que são ricos em açúcar, frituras e excesso de proteína animal" alerta o professor.

Desde o dia 20 de março, o restaurante está fechado por conta da pandemia. Nesse período, Tia Nice se dedicou diariamente em preparar marmitas para distribuir para famílias em favelas da Zona Sul. Foram doadas cerca de 10 mil marmitas. Além disso, a Agência Solano Trindade distribuiu 10 mil cestas básicas. Eles receberam R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) para adquirir os alimentos. Optaram por fazer as compras nos mercadinhos da região e contrataram motoristas de aplicativos que estavam parados por conta do isolamento social. Além disso, compraram R$ 50 mil em frutas, legumes e verduras de produtores da Agricultura Familiar, para incluir nas doações. Algumas cestas eram entregues com livros, máscaras, chinelos, sabonetes e repelentes.

O "Organicamente Rango" pretende retomar as atividades em novembro, mas ainda estão estudando as melhores possibilidades. Independente da volta presencial, o restaurante irá trabalhar no esquema de delivery e retirada.

"É preciso buscar na fonte como forma de origem e devolver ao povo em forma de arte." A frase do poeta Solano Trindade, que leva o nome da Agência, representa muito o trabalho que vem sendo feito por Thiago, Tia Nice e as dezenas de pessoas que fazem parte desse projeto. Eles entenderam que a música que eles escutam, a roupa que vestem, o alimento que consomem, são traços culturais riquíssimos. Por isso, desenvolveram mecanismos de dar conhecimento para elevar a autoestima dos empreendedores da quebrada. Dessa forma, eles encontram meios de sustentar suas famílias, manter a cultura e mostrar para o resto da cidade que a favela e a periferia também têm história e poder de consumo! Esse trabalho é extremamente importante na vida dessas pessoas.

Como diz a Tia Nice "É nós, por nós".

Como ajudar

Agência Solano Trindade, Restaurante Organicamente e o Armazém Organicamente:
R. Batista Crespo, 105 - Vila Pirajussara, São Paulo (SP)
Telefone: (11) 3804-2427