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Quilombos urbanos surgem como polos culturais na disputa por um novo Brasil

Roda de conversa no Aparelha Luzia, no centro de São Paulo - Divulgação
Roda de conversa no Aparelha Luzia, no centro de São Paulo Imagem: Divulgação

Thais Regina

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

15/10/2020 04h00

O Brasil está mais preto? Segundo a PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), o número de brasileiros que se declaram pretos cresceu em todas as regiões do país entre 2015 e 2018. A contragosto da validação de pensamentos racistas — especialmente pelo governo federal —, existe um fenômeno de orgulho preto se fortalecendo nas ruas. "Quando comecei a militar no movimento negro, fui morar na Pedra do Sal", conta Fernando Alves, de 38 anos, "Acompanhei todo o processo de volta do samba [a esse território]. Um dia, devido ao mau tempo, o samba foi cancelado em cima da hora e, então, a roda foi feita dentro da minha casa. Amigos já falavam que a gente precisava de um refúgio, um lugar tranquilo para fazer música e discutir sobre questões raciais. Em 2014 eu começo a abrir a casa para o público, às segundas e sextas, fazendo eventos pontuais: cine-debate, roda de conversa, o pessoal da percussão começa a se unir, se organizar e vira um quilombo cultural." A Casa do Nando se tornou um importante ponto de encontro entre pessoas pretas na capital do Rio de Janeiro e o que começou literalmente na casa de Fernando encontrou seu lugar em um casarão no Largo da Prainha, há cerca de três anos. Em agosto de 2020 a Casa do Nando foi incendiada.

"Eu estava preparando a comida para o delivery do dia seguinte. Conversei um pouco com um amigo, ele foi embora e logo depois eu fui também — isso foi na noite do dia 10 de agosto", relembra o cozinheiro carioca, "Na manhã seguinte, ouvi meu telefone tocando, mas como tinha deixado tudo no jeito, decidi levantar mais tarde. Quando fui desligar o despertador para ficar tranquilo, o telefone tocou novamente — vi que tinha muitas ligações perdidas. Eu atendi, era uma amiga, Georgia. Logo depois a repórter me ligou. Eu moro muito perto, então eu corri pra lá. Vi o casarão pegando fogo. Tinha muita gente, passaram umas 200 pessoas por ali. Coloquei na minha cabeça que tinha acabado o projeto: a Casa do Nando cumpriu seu papel. Aí chegou um casal de amigos de longa data e me avisaram que tinham colocado uma vakinha [forma de financiamento coletivo] no ar porque muita gente estava falando que doaria para a reconstrução. Poxa, eu nem tenho o direito de desistir, sabe? A gente fala de aquilombamento e, na prática, é isso. A Casa do Nando não é minha casa, é um espaço artístico em uma gestão horizontal, em que qualquer um pode fazer parte. É um espaço preto de resistência preta." Já encerrada, a arrecadação coletiva superou a meta em mais de R$ 10 mil. Hoje, Fernando se divide entre entender de fato o que pode ter acontecido com o espaço anterior, ao lado das autoridades competentes, e a procura por um novo lugar.

Além do desafio econômico em manter um centro artístico ativo, o racismo testava diariamente a resiliência do espaço e de Fernando, que chegou a receber ameaças de morte ao longo desses anos. Por outro lado, é preciso existir. Ele se orgulha ao dizer que as pessoas que frequentam a Casa do Nando não abaixam a cabeça para a violência racial e vê o quilombo como um espaço de arte e gastronomia. A comunidade que frequenta os sambas da Pedra do Sal passou a entender o lugar como seu, logo a recheada agenda cultural era feita por e para pessoas pretas. Shows e exposições de artes plásticas eram as atividades mais populares, que dividiam o calendário da Casa com oficinas de instrumentos musicais, rodas de conversa, aulas de inglês (com a abordagem a partir de músicas estrangeiras) e oficinas de culinária afrocarioca.

Na zona noroeste da cidade de São Paulo, outro quilombo também tem sua raiz no samba. Camila Cardoso é parte da gestão compartilhada da Quilombaque e afirma que esse centro surge da falta de política pública em Perus. "Quem fundou costumava ir até o Parque Ibirapuera [viagem de mais ou menos 2 horas de transporte público] para ter aulas de percussão e essas aulas [incentivadas pela Prefeitura de São Paulo] foram suspensas. Então, o pessoal começou a se reunir em uma praça em Perus a fim de promover trocas, aprender e ensinar", conta a rio-clarense de 29 anos. Em pouco tempo, os encontros deixaram de ser na praça e foram para o quintal de três irmãos apaixonados por samba. A brincadeira ganhou o apelido de "Quilombaque na Garagem". Além da música, o leque de atividades foi se expandindo: noites de cinema eram realizadas com a televisão da Dona Domingas, mãe dos rapazes, houve aulas de Libras, chegando a reunir 50 pessoas dentro de casa — a garagem ficou pequena.

Hoje, o terreno em que a Quilombaque vive há mais de 13 anos — e pelo qual a gestão atual está lutando — é feito de bioconstrução, com uma cozinha toda de barro e paredes de pau a pique, além de espaços de reutilização de lixo, como composteiras, espaço para reciclagem e sistema de saneamento. Antes da pandemia do novo coronavírus, o quilombo paulistano promovia um cursinho estudantil popular todo sábado, Jongo do Coreto, aulas de yoga, massagem e capoeira, além de abrir o espaço para outros grupos musicais ensaiarem. "Através dos tambores a gente se reconhece como pretos periféricos e resgata conhecimento ancestral; "quilo" de quilombo e "baque" de batida. Talvez os meninos [três irmãos fundadores] não tivessem a dimensão do que isso se tornaria, mas o que é ser um sujeito preto periférico é a pauta da Quilombaque desde 2005", reflete Camila.

Quilombaque está com campanha de arrecadação coletiva - Reprodução - Reprodução
Quilombaque está com campanha de arrecadação coletiva
Imagem: Reprodução

Entre os quatro quilombos urbanos com os quais conversamos, cultura é uma convergência: um elemento fundamental da constituição e sobrevivência desses espaços. Por que? E por que esses centros se denominam "quilombos"? A imagem dos livros de histórias entoadas por professoras brancas sobre o Quilombo de Palmares não combina com esses espaços ativos no século 21 em grandes capitais.

"Chegar na minha pesquisa foi uma trajetória bem pessoal. Sou produtora e gestora cultural em Salvador, e em 2018 tornou-se urgente para mim racializar meu trabalho", conta Stéfane Souto, de 29 anos, "Fiz especialização em Gestão Cultural Contemporânea em São Paulo, no Itaú Cultural, e simultaneamente comecei o mestrado em Salvador, no Pós Cultura. Entrei com um tema completamente diferente, mas no trânsito Salvador-São Paulo e conhecendo o Aparelha Luzia [quilombo cultural urbano no centro histórico paulistano], foi nascendo a urgência de trabalhar sob uma perspectiva mais pessoalizada. Abandonei o tema anterior e se tornou uma pesquisa sobre gestão cultural engajada, pensando em como ocupar esse espaço com um compromisso político pela transformação social a partir de uma perspectiva afrorreferenciada", diz Stéfane.

Surgiu a pergunta: se o quilombo existe ainda hoje, como esse quilombo se expressa no fazer da gestão cultural e que respostas pode trazer para a gente, que rompam com o exercício de poder que a gente conhece? Agora o nome [da tese] é Aquilombamento: um referencial negro na gestão cultural engajada.

Stéfane Souto, produtora e gestora cultural de Salvador

Segundo ela, a cultura não sustenta neutralidade. Na verdade, a pesquisadora e produtora cultural soteropolitana afirma que a cultura é o principal campo de disputa que o Brasil tem hoje, são elas disputas identitárias, de discurso e narrativa. Isso porque o fazer cultural tem uma posição estratégica: acesso a contatos, alcance de comunicação, influência e, por fim, a valiosa criação de concepções de mundo. O que é ser negro? Qual é a imagem que acabou de vir na sua cabeça ao ler essa pergunta? Por que? Quem criou essa imagem? "Pensar quilombo hoje na cultura é pensar em um espaço de acolhimento e fortalecimento, e também na criação de futuros possíveis — isso é, não necessariamente discutir a existência negra só pautada pelo racismo, construir a imagem do pós-racismo", explica Stéfane, "Tem me interessado muito observar como a gente consegue criar imagens que podem permitir vida plena como um repertório possível."

A partir dessa perspectiva, fica mais fácil compreender a tese de mestrado de Souto. Ela reflete então sobre como a gestão cultural tem as ferramentas para promover uma mudança no pensamento sobre o que é ser negro e os valores associados a essa vivência. Na visão dela, o aquilombamento é uma tecnologia social de organização de pessoas negras. "O ato de aquilombar é uma estratégia que se atualiza de acordo com a necessidade de resistência", explica Stéfane, "Se no período escravocrata foi preciso criar quilombos como espaço de fuga e de sobrevivência, o que o quilombo pode dizer para a gente hoje e que espaços ele pode formar?"

Trocando em miúdos

"Quilombo" é a forma aportuguesada do "kilombo", termo originalmente de povos de língua bantu. Segundo o antropólogo Kabengele Munanga, no artigo "Origem e histórico do quilombo na África" publicado na Revista USP de 1996, os quilombos brasileiros do período colonial imitaram "o modelo africano, transformaram esses territórios em espécie de campos de iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando um modelo de democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar."

Moisés Victório acompanhou o desenrolar de 10 anos da Casa Preta, um casarão centenário no centro histórico de Salvador, de espectador à parte da gestão do espaço. Foi só em 2017 que o centro cultural adotou em sua descrição o termo "quilombo urbano". Sobre as terminologias, Moisés explica que, no Brasil, "as definições de quilombo passam por mudanças: há o quilombo histórico, que é uma estratégia de guerra, um assentamento de guerreiros, acampamento militar, que se posiciona estrategicamente em relação ao oponente; com a absorção dessa estratégia, a gente encara uma segunda definição que é um quilombo de rompimento, o qual perde a característica itinerante e se fixa, para ser um ponto de referência para negros que vinham a fugir, trocavam o endereço em segredo, interessados na quebra do contrato social, poder bélico, intelectual, na autogestão; a terceira definição, mais contemporânea, vem logo após a abolição, quilombo urbano, em que se perde a localização estratégica e ocupa-se o centro urbano; quilombo se torna uma organização social politica econômica cultural que se auto geste e almeja ser um espaço de resistência", explica o músico e sonoplasta soteropolitano.

"Após o fim da escravidão, houve muita luta para que o negro sobrevivesse na sociedade brasileira e, mais que isso, fosse integrado a ela", lê-se no artigo "O Quilombismo em espaços urbanos - 130 anos após a abolição" de Paula Carolina Batista, "Como a produção de conhecimento não era de domínio dos negros, ideologias racistas se disseminaram, contando suas versões particulares da história do negro no país; com o passar dos anos, porém, estudiosos - principalmente negros - dedicaram-se à tarefa de contar a história pela ótica dos oprimidos."

Beatriz Nascimento foi uma dessas pensadoras sobre a história negra no Brasil. E é a partir dessa pesquisadora sergipana que se ressignificou outra vez o termo quilombo. A interpretação de Nascimento permite que se conclua que cada corpo racializado é um quilombo. Ela volta para o indivíduo o lugar de quilombo, logo o conceito passa a girar em torno dessa tomada discursiva, resgate do passado e protagonismo do futuro. Significado que tem eco em Paula Batista, que declara ainda na introdução do seu trabalho que "Aquilombar-se é, para os negros, um jeito de ser no mundo."

Munanga pontua também o intercâmbio cultural como identidade dos quilombos brasileiros desde o período escravocrata. Ele diz que "Suas práticas e estratégias desenvolveram-se dentro do modelo transcultural, com o objetivo de formar identidades pessoais ricas e estáveis que não podiam estruturar-se unicamente dentro dos limites de sua cultura. Tiveram uma abertura externa em duplo sentido para dar e receber influências culturais de outras comunidades, sem abrir mão de sua existência enquanto cultura distinta e sem desrespeitar o que havia de comum entre seres humanos. Visavam a formação de identidades abertas, produzidas pela comunicação incessante com o outro, e não de identidades fechadas, geradas por barricadas culturais que excluem o outro."

Mais conhecido como Caboclo de Cobre, Ytupinijú tem 35 anos e está na gestão da baiana Casa Preta há tempo suficiente para contar histórias ricas em detalhes, citando nomes num tom de familiaridade com todos. Ele diz que o fenômeno de resgate cultural que se desenrola no espaço emula o que acontecia nos quilombos históricos, nos quais o aquilombamento acontecia junto com o aldeamento: um retrato do povo brasileiro. Antes da pandemia do novo coronavírus, a Casa sediava um clube do livro, fóruns políticos, espetáculos de dança, teatro, música, exposições, fórum de iluminadores da Bahia, estúdio musical, enfim, tornou-se um ponto de efervescência na produção cultural e artística de Salvador.

Sobre como os quilombos urbanos podem reverberar na nossa sociedade contemporânea, Stéfane diz que "Espaços culturais tornam evidente que somos todos criadores de cultura. Quando frequento um lugar como a Casa Preta, entendo que faço parte da existência daquele lugar, está na minha rota de existência. Em um espaço como esse, eu me entendo como sujeito e produtora de conhecimento, integrante de uma comunidade mais ampla. Nos dá o direito de existir enquanto pessoas — pensando, criando, realizando."

"Foi preciso formar quilombos, nunca foi possível não criar quilombos", afirma Stéfane. "Iniciativas de formação online são formas de aquilombamento, porque quando você monta um grupo de estudos, trazendo referências, você está aquilombando pessoas através de conhecimento negro; quando você produz uma página para construir imagens positivas de negritude, você está aquilombando. Não só é possível, mas é também necessário aquilombar no território virtual porque é um lugar de que a gente não pode abrir mão."

Fernando Alves é o fundador da Casa do Nando, no Rio de Janeiro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Fernando Alves é o fundador da Casa do Nando, no Rio de Janeiro
Imagem: Arquivo pessoal

Negro é lindo, negro é amor

"Então, veio a pandemia, nos pegou de surpresa, toda essa dificuldade econômica e de estrutura se reflete em a gente não ter um fundo de caixa. Sou produtora cultural, trabalho com eventos, então todo meu trampo parou", conta Joice Marques, de 34 anos, "A Casa parou, nosso último evento foi em março. Mas a gente não pode parar porque a gente precisa manter o diálogo com a comunidade. Iniciamos a campanha com a distribuição de cestas básicas e continuamos o contato com a galera — passamos completamente para uma agenda online."

Joice mora hoje na Casa Akotirene, no Distrito Federal, um quilombo urbano cultural ocupado por mulheres negras. Sua voz parece cansada. "Bom, a Ceilândia é um lugar incrível e nesse processo de pandemia a gente tem vivido momentos bem difíceis", desabafa a gestora, nascida no Piauí. "As pessoas na Ceilândia não pararam de ir trabalhar, começou a aumentar muito o número de casos e óbitos aqui, então houve dois decretos de isolamento da cidade, sem nenhum tipo de cuidado. Uma população periférica, sem renda fixa, maioria autônoma, muitas pessoas dependentes — no fim, essas medidas foram muito violentas. A gente está em uma situação muito difícil, a Casa está sendo solicitada muito mais vezes."

Saúde mental é prioridade. A Casa viabiliza o atendimento psicológico online para a comunidade, via psicólogos parceiros. Fora isso, rodas de conversa, oficinas e cursos preenchem a programação de transmissões ao vivo da Akotirene. Antes da Covid-19, a agenda contava também com aulas de inglês, capoeira, reflexologia, massoterapia, dança afro e sarau aberto, às quintas.

Sob essa gestão desde 2019, Joice conta que o reconhecimento enquanto quilombo cultural veio de forma orgânica. "Foi-se constituindo um quilombo urbano no decorrer do tempo, a gente foi percebendo essa identidade de quilombo na casa: pelas vivências individuais, trânsito de corpos negros no espaço, não tinha como não se reconhecer e se identificar", diz. Nesse sentido, é curioso como a Casa do Nando, por exemplo, assumiu-se enquanto quilombo depois que os frequentadores começam a chamá-la assim, Quilombaque traz o símbolo de resistência no nome como propósito direto e, por sua vez, Akotirene descobre-se quilombo a partir da convivência e luta cotidiana por moradia — um processo similar ao da Casa Preta.

"Três pessoas pretas reunidas é um quilombo, sabe? É a representatividade da resistência de uma cultura e existência de uma ancestralidade, que a gente carrega dentro de nós, mas em grande parte da nossa vida ela não desperta por várias problemáticas — demora bastante para a gente descolonizar o pensamento", considera Joice.

"Crescendo como uma criança negra em Salvador, em uma família miscigenada, eu nunca me vi branca, mas nunca me questionei como pessoa negra", relata Stéfane, "Não foi uma questão presente na infância e adolescência, só passa a ser quando eu encontro pessoas parecidas comigo. Eu só consegui reconhecer e pensar em aceitar meu cabelo natural quando meus primos mais velhos fizeram isso, antes não era nem uma possibilidade que eu recusava, só era uma coisa em que não pensava. Pensar no aquilombamento e a população preta tem a ver com isso: ver as pessoas se articulando, se identificando cada vez mais e mudando o referencial do que é ser negro, tirando esse paradigma da negatividade, isso é transformador."

A dj Bieta Prod já rodou o Brasil e é uma das frequentadoras da Casa do Nando - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A dj Bieta Prod já rodou o Brasil e é uma das frequentadoras da Casa do Nando
Imagem: Arquivo pessoal

"Sempre vou procurar estar entre os meus"

Bieta nasceu em Porto Alegre e pisou em um quilombo urbano pela primeira vez aos 8 anos de idade: o encantador universo particular de uma escola de samba. Não qualquer escola de samba, mas a prestigiada Garotos da Orgia, fundada em 1980 e 4 vezes campeã. Nela, todos os temas eram sobre histórias ou perspectivas africanas. "Me reconheci e tive certeza do que queria fazer da minha vida: perpetuar o que eu estava vendo", relembra a DJ, performer e estilista de 42 anos.

Bieta Prod, como é conhecida, frequentou a Garotos da Orgia dos 8 aos 20 anos, atuando em um grupo de música e dança afro, o que influenciou diretamente o seu trabalho. Ela é dessas pessoas que tem rodinha nos pés: foi para o Rio de Janeiro, onde encontrou-se na Casa do Nando, fez temporadas na Bahia e no Recife. Foi para Pernambuco conduzir pesquisa sobre afoxés — fenômeno cultural em que gênero musical e demarcação de território se fundem a partir do ritmo do candomblé, Bieta define como a "religiosidade que vai para a rua, o sagrado que encontra o profano". Além disso, fora do Brasil, ela conta que também pôde vivenciar momentos de aquilombamento. Isso porque, desde sua infância, a representatividade se tornou uma bússola para a gaúcha: "Posso ir para qualquer lugar desse mundo, sempre vou procurar estar em um território deste, estar entre os meus", declara.

Para ela, que se dedica à arte tão intensamente, os quilombos são a busca constante por liberdade, autoconhecimento e companheirismo. "Tentam destruir os quilombos, espaços negros, ainda hoje, então entendo como uma luta de dignidade ancestral, de sermos considerados como seres humanos e não como produtos ou posses. Representa o se ver no outro, aprendizado, troca, grandes vivências para a gente conseguir se defender dentro de uma sociedade que a todo momento nos mata", reflete.

É curioso como num espaço pode pulsar frescor, como nos quilombos urbanos. Isso remete ao quilombo histórico e sua função primordial: a vida. Em segundo lugar, um novo projeto de sociedade. Quilombo é o símbolo máximo da persistência e reverte a imagem de rebelião como movimento espontâneo caótico para uma estratégia de sobrevivência determinada. "Estamos aí para cobrar respeito, reparação, políticas públicas, o mínimo de permanência digna nessa terra", conclui Bieta.

Afinal, o Brasil está mais preto? Muito provavelmente não. Mas o Brasil está mais orgulhoso de ser preto. Moisés afirma que os quilombos urbanos hoje em dia se assemelham mais porque assumiram para si uma responsabilidade que têm cada um com a sua respectiva comunidade; missão essa que se traduz em resistência e insurgência, as belíssimas ideias que Ytupinijú usa para descrever o quilombo que pulsa dentro de si. De Salvador a São Paulo, do Rio de Janeiro ao Distrito Federal: esses territórios borbulham identidade e reverberam poder preto nas ruas. Joice disse uma frase na entrevista que sintetiza o poder do aquilombar: "É uma rasteira no racismo quando você reverencia sua negritude."