Opinião

Caminhar por Luiz Gama: entenda a importância histórica do 21 de junho

Caminhar pelas ruas do centro velho de São Paulo continua sendo um ato de resistência pela memória de Luiz Gama. Não é à toa que, chova ou faça sol, um grupo de ativistas visita os símbolos para lembrar a existência deste extraordinário personagem, em dois momentos importantes: 21 de junho, dia do seu nascimento, e 24 para 25 de agosto, datas da morte e do funeral.

Essa mobilização, que se repete há quase um século e meio, é testemunha das transformações de uma metrópole que ainda esconde a presença negro-indígena. Para celebrar o nascimento, o grupo visita o imponente busto do homenageado, no Largo do Arouche, onde fazem ecoar poesias e crônicas. Para lembrar o funeral, o mesmo ritual acontece, com romarias ao túmulo de Gama no Cemitério da Consolação.

Enquanto caminham afirmam um movimento social antirracista, que se pauta na promessa feita no instante do sepultamento, quando uma multidão jurou que jamais deixaria morrer as ideias pelas quais lutara aquele gigante.

O escritor Raul Pompéia teria recebido a fatídica notícia por volta das 15h30 do dia 24 de agosto de 1882, uma quinta-feira. Amigo e admirador de Gama, Pompéia contou que saiu de casa desesperado e tomou o bonde para o Brás, na zona leste da cidade de São Paulo, onde morava o hoje considerado maior jurista do Brasil. Gama não só arrancou do cativeiro mais de 500 pessoas, mas também, e principalmente, mobilizou com originalidade o Direito para formular um projeto para o Brasil, que incluía, por exemplo, articulada ao fim da escravidão e da monarquia, educação universal e gratuita.

Pompeia sentiu-se "esmagado por uma espécie de raiva surda, sufocante, contra esse monstro horrível que habita não sei onde, e que, de vez em quando, estende para fora a garra e leva-nos um ente querido". Sua crônica Última página da vida de um grande homem, publicada na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, é um precioso depoimento, uma narrativa tão minuciosa e emocionada que é como se pudéssemos ouvir a sua voz embargada e ofegante narrando o cortejo desde o momento da saída.

No meio da tarde do dia 25, por volta das 16h, "a tampa do caixão caia, cerrando-se sobre o defunto com o ruído de uma boca que mastiga. Dentro de poucos minutos, o povo, aglomerado diante da casa, viu levantar-se o reposteiro negro e estender-se para a rua um longo esquife, coberto de luzentes listrões de ouro. Depois do esquife precipitou-se uma multidão numerosa. Todos de preto. Era o enterro".

Mais de três mil pessoas, cerca de 10% da população paulistana de então, acompanhou a pé o funeral até o Cemitério da Consolação, a cinco quilômetros do ponto de partida. Os homens presentes, oriundos de contrastantes segmentos sociais e condições econômicas, se revezavam para viver a honra de carregar aquele "glorioso cadáver" pelas alças do caixão, abandonando o coche fúnebre, que seguia vazio e atravessava, com a multidão, a várzea do Carmo. Para depois subir a colina em cujo topo organiza-se o núcleo urbano da cidade, e então tomar o Caminho de Pinheiros, hoje a Rua da Consolação.

Distância que nem se compara, no entanto, aos mais de 170 quilômetros que Luiz Gama percorrera de Santos até Campinas, também a pé, aos 10 anos de idade, depois de ser vendido - mais tarde ele descobriria que ilegalmente - pelo próprio pai, em Salvador.

Diante de tudo isso, talvez não seja adequado o título da crônica de Raul Pompeia. Afinal, nem Luiz Gama apreciava a companhia dos grandes homens - que dirá a ideia de ser um deles -, nem aquela foi a última página da sua vida.

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* Abílio Ferreira é escritor, e coordenador no Instituto Tebas de Educação e Cultura e da websérie Liberdade ou Morte: histórias que a História não conta.

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