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O projeto que "ensina a pescar" e já formou atletas e empreendedores

Kátia dedicou-se ao basquete por influência do Arrastão  - Arquivo Pessoal
Kátia dedicou-se ao basquete por influência do Arrastão Imagem: Arquivo Pessoal

Bárbara Forte

De Ecoa

28/10/2019 04h00

Kátia Denise da Silva Morales, hoje com 41 anos, costumava chamar a atenção na infância por ser bem maior que as outras crianças da sua idade. Aos sete anos, ela já sentia o peso de ser uma menina diferente que a maioria - e sofria com isso. Foi nessa fase, também, que sua mãe, Maria de Lourdes, a levou ao Projeto Arrastão, uma ONG que promove suporte à comunidade do Campo Limpo, zona sul de São Paulo, desde 1968 e que tem a missão de formar cidadãos. Lá, a paulista nascida em Taboão da Serra, cidade que fica na divisa com o bairro, encontrou na própria diversidade o fio condutor que a levou à sua profissão: a de jogadora de basquete.

Jogadora profissional durante 20 anos, a pivô Katião, como era conhecida dentro de quadra, foi campeã sul-americana e vice-campeã no pré-olímpico de Havana, em Cuba, em 1999, com a seleção brasileira. Também se formou em educação física e pedagogia e hoje atua como professora de basquete em uma comunidade da capital paulista por meio do Projeto Passe de Mágica, da Magic Paula.

No Arrastão, eles têm um lema, que é: não damos o peixe, ensinamos a pescar."

"Movida por isso, aproveitei cada oportunidade - das oficinas de bordado, teatro e dança até o esporte, onde me encontrei", conta Kátia.

Segunda casa

Uma das responsáveis por acreditar nas potencialidades de Kátia foi Selma Dáu Bertagnoli, a Tia Selma. A educadora paulistana de 62 anos atua na ONG desde 1976, quando entrou para fazer estágio - e nunca mais deixou. Começou como voluntária em recreação e, ao final da faculdade de serviço social, foi admitida. Ficava com as crianças pequenas, depois com os jovens em contraturno escolar, criou projetos para a juventude em convênio com empresas, iniciou trabalhos de empreendedorismo e auxiliou jovens de todas as idades a pensarem em como seguiriam seu rumo profissional.

Tia Selma trabalha há 43 anos no Projeto Arrastão e contribuiu para a formação de jovens  - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Tia Selma trabalha há 43 anos no Projeto Arrastão e contribuiu para a formação de jovens
Imagem: Arquivo pessoal
"Kátia foi uma dessas crianças que chegaram aqui novas e desenvolveram as oficinas prestadas até os 15. Depois, passou a nos ajudar na creche, por onde ficou quase um ano. Eu via o poder que ela tinha em suas mãos", lembra tia Selma.

"Foi lá que ganhei meu primeiro salário e pude comprar um tênis de basquete, esporte pelo qual me apaixonei ali dentro. Posso dizer que o projeto é minha segunda casa. Minha mãe ia trabalhar e eu ficava lá, aprendendo de tudo. Tia Selma foi uma das pessoas que me levaram a ser a cidadã que sou hoje", comenta Kátia.

A segunda casa da atleta é, para tia Selma, o primeiro lugar onde ela se sentiu, de fato, em um lar: "O Arrastão entrou em minha vida antes do meu casamento e dos meus filhos. É um coração pulsante, a energia para começar o dia".

"Me tornei uma mulher com um olhar diferente, uma escuta atenta. Sinto-me uma gotinha na vida das pessoas que passaram por lá nesses 43 anos", diz.

Nossa missão é formar cidadãos íntegros. Não queremos supermulheres e super-homens. Queremos chefes de famílias íntegros. O que a gente procura é dar à comunidade formação por meio de informação."

Um clube de mães

A história do Projeto Arrastão tem início no final dos anos 1960 com uma ação de voluntariado. Um clube de mães composto por cerca de 70 senhoras da sociedade - entre elas Laís Ciampolini, Lucy Franco Montoro, Luiza Villares Musetti, Helena Bicudo e Teresa Masagão - ia até a região do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, com a estratégia de ensinar artesanato e ajudar mulheres, em sua maioria mães solo, na geração de renda.

Crianças da educação infantil do Projeto Arrastão  - Leo Martins/UOL - Leo Martins/UOL
Crianças da educação infantil do Projeto Arrastão
Imagem: Leo Martins/UOL
"Elas traziam essas mulheres para oficinas de arraiolo, uma técnica para fazer tapetes, e em rodas de conversa elas trabalhavam questões de planejamento familiar, comentavam sobre as dificuldades que elas tinham para criar as crianças sem o suporte da família em plena ditadura militar", explica Katya Delfino, relações institucionais da ONG Arrastão.

Com elas, vinham também as crianças, que precisavam de um lugar para ficar enquanto as mães passavam pelas capacitações. Iniciou-se, então, um projeto de educação infantil, que, conforme as crianças foram crescendo, desenvolveu novos programas pedagógicos de acordo com a faixa etária de cada uma.

"Hoje o projeto se transformou numa organização de desenvolvimento comunitário. Temos programa social, pedagógico, de educação, cultura, geração de renda e qualidade de vida para uma população que atende anualmente 2,5 mil pessoas na sede e 11,5 mil nas comunidades, em parcerias com escolas públicas e outras organizações sociais locais", afirma Delfino.

Entre as pessoas que atuam na instituição estão 98 voluntários, que ministram oficinas diversas e também auxiliam no cuidado de crianças pequenas, e 93 profissionais - desde a parte administrativa até a criação e execução de novas ações. Durante os últimos 50 anos, o Projeto Arrastão atendeu aproximadamente 100 mil pessoas.

Programas e oficinas

Arrasta-lata é um dos projetos do Projeto Arrastão  - Leo Martins/UOL - Leo Martins/UOL
Arrasta-lata é uma das ações do Projeto Arrastão
Imagem: Leo Martins/UOL
Atualmente, o Projeto Arrastão tem programas diversos para o público de 1 a 18 anos, e para adultos, divididos em cinco pilares: educação infantil, crianças e adolescentes, formação de jovens, empreendedorismo e desenvolvimento comunitário.

Na educação infantil, crianças entre um e cinco anos ficam no local das 7h às 17h. Já os alunos de 7 a 18, frequentam a sede do projeto no contraturno escolar, durante quatro horas. As aulas são gratuitas e disponibilizadas ao público mediante cadastro presencial. Os interessados são chamados conforme as vagas vão sendo abertas. Há oficinas que duram entre três meses e um ano, de acordo com a atividade, para moradores da região e de bairros próximos.

Ao todo, 19 programas são realizados dentro da instituição. Entre eles, estão o Arrasta-lata, grupo que constrói seus instrumentos musicais com materiais reciclados em oficinas educacionais; o Empreendedorismo cultural, que integra o Coletivo de Jovens Artistas e tem o objetivo de criar um campo comum entre a dança e as artes plásticas; e a Ciranda por um futuro melhor, com a proposta de construir um futuro melhor por meio de ações preventivas, como o atendimento e acompanhamento psicossocial de famílias que estão envolvidas em uma rede de ameaças e de vulnerabilidade social.

Pescadores do Arrastão

Com a premissa de não dar o peixe, mas ensinar a pescar, outros alunos do projeto, assim como a jogadora de basquete Kátia Denise da Silva Morales, seguiram por uma vida profissional que dialoga com parte dos aprendizados que tiveram no bairro do Campo Limpo.

Jairo Silva dos Santos, 31 anos, ao lado da mãe, que o apresentou ao projeto Arrastão  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jairo Silva dos Santos, 31 anos, ao lado da mãe, que o apresentou ao projeto Arrastão
Imagem: Arquivo pessoal

Jairo Silva dos Santos, 31 anos
Morador de Taboão da Serra (SP)

"Minha história com o arrastão começou bem antes de eu nascer. Minha mãe, retirante da Paraíba, encontrou profissionalização no Arrastão. A partir daí, eu cresci com essa influência de participar do projeto e aproveitar as oportunidades. Aos 13, eu iniciei as aulas, e a que mais me atraiu foi a oficina de computação gráfica, cinema e novas mídias - o que me levou à formação na mesma área. Saí do Arrastão em 2007 e logo comecei a trabalhar no segmento, inclusive como empreendedor."

Fábio Lima, 35 anos, é empreendedor no campo audiovisual  - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Fábio Lima, 35 anos, é empreendedor no campo audiovisual
Imagem: Arquivo Pessoal

Fábio Lima, 35 anos
Morador de Taboão da Serra (SP)

"Entrei no projeto no fim de 2000. Era um jovem tímido e sonhador. Meu pai fazia educação para adultos no Arrastão quando soube do projeto. Fiz diversas oficinas e aprendi que tudo o que fazemos tem um lado social muito forte, que podemos mudar não só nossa realidade, como também a da nossa comunidade. Me dediquei ao audiovisual a partir de uma oficina que tive lá e, na sequência, ingressei no mercado de trabalho nessa área como empreendedor e youtuber."

Joice Pereira dos Santos, 30 anos, dedica a vida às corridas de rua  - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Joice Pereira dos Santos, 30 anos, dedica a vida às corridas de rua
Imagem: Arquivo pessoal

Joice Pereira dos Santos, 30 anos
Moradora de Taboão da Serra (SP)

"O projeto é de extrema importância na minha vida. Eu e meus irmãos passamos pelo projeto, e eu me identifiquei muito com o programa de qualidade de vida, onde comecei a praticar a corrida, aos 13 anos. Além de perceber que queria me tornar educadora física, sonho completado anos mais tarde, especializei-me em corrida, competi dentro e fora do país e, hoje, vivo de corrida de rua. Mas posso dizer, com certeza, que a maior formação que recebi foi a de cidadã. E isso é o bem mais precioso que eu podia ter recebido."

Como ajudar o Projeto Arrastão É possível ser voluntário ou fazer uma doação pelo site http://arrastao.org.br/doar/. Telefone: (11) 5843-3366. Endereço: R. Dr. Joviano Pachêco de Aguirre, 255, Jardim Bom Refúgio (região de Campo Limpo), São Paulo (SP).