Quem tem fome tem pressa

A urgência por comida fez muita gente partir para a ação direta

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Uma catástrofe de "proporções bíblicas" foi a expressão da ONU para caracterizar o risco de crise alimentar, dobrando o número de famintos para 265 milhões mundo afora. No Brasil, segundo dados de 2018, a fome vinha crescendo em um intervalo de cinco anos, com 10,3 milhões de pessoas em condição de insegurança alimentar grave. Esse número se equipara ao patamar de 2004 e pode levar o país de volta ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas, que lista países onde 5% da população não ingere o mínimo de calorias por dia para viver - segundo a Organização Mundial da Saúde, um homem adulto deve ingerir cerca de 2.500 calorias por dia e uma mulher, 2.000.

Se a emergência só cresceu durante a pandemia, também se multiplicou o número de campanhas de crowdfunding, ações de distribuição de alimentos e tantas outras medidas voltadas a garantir um prato de comida para quem mais precisa.

Este é um capítulo da série

Reconstrução

Inspiração em tempos de pandemia

Água no feijão


A chef Telma Shiraishi usa a cozinha de seu restaurante para distribuir marmitas durante a pandemia

Da noite para o dia, como todos os empresários do ramo, a chef Telma Shiraishi precisou fechar as portas das duas unidades do restaurante Aizomê, nos Jardins e no centro cultural Japan House, na Avenida Paulista. E o que a preocupou não foi o próprio negócio. "Logo no início do isolamento, com todas as ruas vazias, todas as portas fechadas, comecei a ver pessoas em imensa dificuldade, principalmente moradores de rua, que ficaram totalmente desamparados", conta.

"Para mim, como cozinheira, foi muito doloroso testemunhar pessoas com fome. E por mais que estivéssemos lá, tentando ajudar, a sensação era de uma gota de água no meio do deserto. Foi então que surgiu aquele sentimento, aquela urgência de tentar fazer mais. E nasceu então o movimento Água no Feijão."

A chef passou a usar seus restaurantes como base para uma operação que distribuiu, até novembro, 30 mil marmitas em São Paulo, com a colaboração de cerca de 60 voluntários. "Começamos timidamente, no entorno, com uma ação pequenininha, e fomos fazendo cada vez mais. Os entregadores também levavam marmitas para distribuir pelo caminho", conta, lembrando que eles próprios enfrentavam dificuldades. "Eu ouvia o relato deles, a tortura que é trabalhar com fome transportando comida. Começamos a preparar as refeições para eles também."

Com a reabertura do Aizomê, Telma precisou de um novo planejamento para o projeto, e a resposta veio de Heliópolis. "A gente descobriu uma cooperativa de cozinheiras da comunidade que estavam paradas, sem emprego. Montamos uma cozinha comunitária numa escola infantil e geramos trabalho e renda para essas mulheres, que ainda têm a oportunidade de fazer algo pela própria comunidade. Essa é uma evolução importante do projeto, é para onde queremos ir."

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A primeira vez que fui entregar marmitas no centro de São Paulo, para os sem-teto, eu literalmente desabei. É inconcebível que, nos tempos modernos, em uma cidade tão rica quanto a nossa, tenha tantas pessoas em uma situação desesperadora"

A força da solidariedade


Eliane Moura Martins acredita na cooperação como instrumento de transformação social

"O nosso desafio foi promover o encontro da comida produzida no campo com a panela vazia da cidade", conta Eliane Moura Martins, militante do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD) e uma das coordenadoras do projeto Periferia Viva. Assim que foi declarada a pandemia, o MTD, assim como outros coletivos populares historicamente ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), começou a se organizar para prestar ajuda às populações mais carentes, organizando doações que chegaram a 19 estados brasileiros.

"Essa comida vem da luta pela terra, pela reforma agrária, do trabalho das mulheres camponesas, dos pequenos agricultores. Essa comida é fruto da luta também. É comida orgânica, ecológica, um alimento que foi produzido por pessoas tão pobres quanto as que estão na cidade."

E a busca de Eliane vai além do ato de doar a comida, ela acredita na conscientização através da educação. Assim, a organização em que atua elaborou uma força-tarefa rua a rua nas periferias, atrás de pessoas que se dispusessem a participar de oficinas de capacitação como Agentes Populares de Saúde e, em seguida, passassem adiante dentro das comunidades o conhecimento que adquiriram.

A solidariedade se mostra como a grande ferramenta de mudança na nossa sociedade, pois ajuda tanto a criar vínculos, quanto a respeitar os processos sociais"

COMO AJUDAR

Instagram: @periferiaviva

WhatsApp: (31) 9124-3701

http://periferiaviva.org.br/

Esperança na quebrada


A líder comunitária Lia Esperança entrega marmitas e cestas básicas na periferia paulistana

Maria de Lourdes Andrade de Souza, 57, é mais conhecida como Lia Esperança, apelido que recebeu ao fazer da favela paulistana Vila Nova Esperança, na zona oeste de São Paulo, um bairro sustentável. Em uma área de preservação ambiental, lá vivem cerca de três mil pessoas, que compõem as aproximadamente 600 famílias da comunidade, atendida hoje por energia elétrica regularizada e coleta seletiva de lixo, impactos diretos das ações lideradas por ela.

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Na pandemia, Lia voltou seus esforços para captar doações que garantissem a entrega diária de 70 marmitas e a montagem das mais de mil cestas básicas distribuídas por mês, rotina mantida desde o início do isolamento social, em março. E Lia gosta de destacar que, embora personifique essa operação, a principal marca é o trabalho coletivo: os moradores interessados em fazer a diferença se reúnem, dialogam e, a partir de metas definidas em consenso, passam a se organizar. "Autossuficiência, horizontalidade, diversidade e solidariedade" são, segundo ela, as bases de qualquer transformação.

"Todos se beneficiam, até quem não se envolve", afirma. Entre as conquistas mais recentes da Vila Nova Esperança, um polo de inovação social, estão uma cisterna e uma fossa ecológica, para evitar a contaminação do solo. E, na lista de projetos interrompidos pela pandemia, mas que devem ser retomados, estão uma creche, uma escola e uma quadra esportiva.

Pessoal, vamos juntos botar a mão na massa? É assim que a gente trabalha na vila. A gente aprende junto"

COMO AJUDAR

Instagram: @institutoliaesperanca

Facebook: @institutoliaesperanca

Telefone: (11) 3783-1998

Email: institutoliaesperanca@gmail.com

#MinhaHistóriaECOA


"Eu e meu marido somos autônomos, trabalhamos na produção e vendas de brigadeiro. Desde 2012, eu vendia na rua, andando no sol quente, de loja em loja. Depois da pandemia, com o isolamento social, tivemos que nos reinventar e começamos a trabalhar com delivery. Com a divulgação nas redes sociais, nossas vendas aumentaram e ganhamos mais clientes."


Fabiola Lima, 26, doceira, Macaíba (RN)

Nada se perde


A economista Luciana Quintão ajuda a combater a fome evitando o desperdício

De um lado, está a fome, de outro, o desperdício de alimentos. Essa conta nunca fez sentido para a economista Luciana Quintão: "A gente vive num país riquíssimo, que produz o suficiente para alimentar todos os brasileiros. Alimentamos bilhões de pessoas fora do país, mas aqui dentro temos ainda 53 milhões de pessoas que vivem em situação de insegurança alimentar. E esse número era pré-pandemia. Hoje, fala-se em 80 milhões de pessoas. Isso num país com 210 milhões de habitantes", diz Luciana, que há 22 anos fundou a ONG Banco de Alimentos.

A organização tem como missão buscar alimentos que seriam descartados na indústria e direcioná-los para populações carentes. Quando a pandemia chegou oficialmente ao Brasil, Luciana não cogitou se afastar do trabalho. "Muita gente cogitou, insinuou que eu deveria parar também. Eu falei: 'a gente não vai parar, a missão da ONG continua'."

Desde então, além das cestas básicas, a Banco de Alimentos também passou a doar cartões de alimentação no valor médio de R$ 98 e seguiu com a Colheita Urbana, iniciativa de arrecadação de sobras do comércio para a doação às entidades assistidas pela organização. Entre abril e outubro, foram mais de 208 mil cestas doadas, quase 19 mil cartões e cerca de 815 toneladas de alimentos arrecadados. A ação conjunta impactou até agora mais de 1 milhão de pessoas.

Enquanto o novo desafio segue sendo manter o ritmo de doações alto, a Banco de Alimentos e outras organizações da sociedade civil ganharam o suporte do decreto de lei que exime de responsabilidade civil ou criminal o doador de boa-fé de alimentos. "É o PL 14016, lei que permite a doação de alimentos de restaurantes. Isso é muito novo", conta ela, que já está está colocando o novo plano em ação: angariar restaurantes parceiros e levar o alimento excedente para as entidades que atende.

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Eu não posso resolver a fome de São Paulo, mas posso ensinar outras pessoas a lutarem contra ela"

COMO AJUDAR

Instagram: @ongbancodealimentos

Facebook: @bancodealimentos

Telefone: (11) 3674-0080

Email: info@bancodealimentos.org.br

Site: bancodealimentos.org.br/doe

Uma nova missão


À frente de uma ONG voltada para a moradia, Socorro Leite passou a combater também a fome na pandemia

"Toda a equipe ficou incomodada e entendia que não fazia sentido trabalhar de casa, só em funções administrativas, sem fazer algo efetivamente", conta Socorro Leite, diretora-executiva da Habitat para a Humanidade Brasil, ONG criada há 25 anos, que tem como causa a promoção da moradia como um direito humano fundamental. Com esse sentimento, entenderam que, durante a pandemia, era hora de construir ações voltadas para a alimentação, indo além da missão do projeto.

A ONG mobilizou até o momento mais de R$ 4,5 milhões, obtidos a partir de doações feitas por cerca de mil pessoas, empresas e fundações, além de ter arrecadado 70 toneladas de alimentos e materiais de higiene pessoal. Esses recursos impactaram 98 cidades, em 15 estados brasileiros, e contaram com o trabalho de 232 voluntários em ações de mobilização digital, distribuição de alimentos, ativismo, comunicação e captação de recursos.

Agora, Socorro trabalha em uma nova frente: chamada de Uma Mão Lava a Outra, a ação deve instalar 420 pias comunitárias em 170 comunidades, de 18 estados. "Quem sofria com a falta d'água antes da pandemia continua sofrendo agora, só que com maior necessidade de água para ficar em dia com a higiene e prevenir o coronavírus", diz Socorro, sobre uma questão que deveria estar no foco das políticas públicas.

Além das campanhas, atuamos no campo da incidência política, pois vemos que boa parte das dificuldades das comunidades reside em problemas ligados ao poder público"

COMO AJUDAR

Instagram: @habitatbrasil

Facebook: @habitat.br

Email: habitat@habitatbrasil.org.br

Site: https://doe.hph.org.br/website/single_step

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Herança bendita


Daniel Souza leva adiante o legado do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, no combate à fome

Presidente da ONG Ação da Cidadania, Daniel Souza define o efeito da pandemia sobre a população mais pobre do país como "uma tragédia social e humana". Um dos movimentos mais reconhecidos na luta contra a fome no Brasil, a organização fundada por seu pai, o sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), vê em 2020 o pior cenário de sua história. "Há 27 anos a situação de fome e insegurança alimentar não era como a gente está vendo agora", diz.

Essa constatação motivou a ONG a agir depressa para intensificar a distribuição de alimentos para as famílias que perderam renda com a crise e, assim, criaram o projeto Ação Contra o Corona, que ganhou força com o apoio de vários artistas: Gilberto Gil, Elza Soares, Seu Jorge, Ludmilla, Anitta, Milton Nascimento, Liniker, Iza e Xênia França estão entre as pessoas que divulgaram a campanha da Ação da Cidadania em suas lives.

Entre março e outubro, Daniel conta terem arrecado R$ 30 milhões em doações, dinheiro que foi transformado em 8 toneladas de alimentos, usados para montar cestas básicas entregues a mais de 2 milhões de pessoas.

Nos organizamos para que essa distribuição acontecesse logo, porque eram pessoas que tinham parado de trabalhar e ainda não existia a questão do auxílio emergencial. Na crise, quem não tem nenhum tipo de lastro é a população vulnerável, e essa foi a nossa prioridade desde o início"

Terra fértil


Adriana Oliveira coordena a distribuição de marmitas produzidas por agricultores familiares do Paraná

Entre os muitos movimentos da sociedade civil organizados para combater a fome durante a pandemia, havia uma preocupação em comum, para além de resolver o problema mais urgente de matar a fome: que a comida doada tivesse qualidade, variedade e nutrição. Adriana Oliveira, diretora estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Paraná, mantém essa perspectiva no foco da ação Marmitas da Terra.

"É dar o que nós temos, nunca o que está sobrando. É o que a gente tira da mesa, da nossa produção, fruto do nosso trabalho. Fazemos isso para preservar a vida das pessoas que estão vulneráveis ao vírus e à fome, doando alimentos saudáveis e diversos."

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Até novembro, foram preparadas e entregues 29.860 marmitas, produzidas com o trabalho de cerca de 130 voluntários, que se envolvem em todas as etapas, da distribuição às colheitas e plantios de alimentos agroecológicos. "As marmitas são produzidas com alimentos dos nossos acampamentos e assentamentos, de pessoas engajadas no projeto de agricultura familiar e, ainda, arrecadados por meio de financiamento coletivo."

Para Adriana, garantir autonomia alimentar à população é um passo ainda mais importante. "A gente não quer só entregar a marmita pronta. A gente acredita que o que tem que vir para ficar são as cozinhas comunitárias nos bairros. Precisamos ajudar as comunidades a se empoderarem, criarem pernas, produzirem os próprios alimentos."

Para a população que está na periferia, a fome é emergencial, é imediata. Mas, como construção de projeto, a gente não pode centrar só no emergencial, tem que pensar em soluções que tragam autonomia"

COMO AJUDAR

Instagram: @marmitas_daterra

WhatsApp: (41) 99917-0515 ou (43) 9626-2270

Site: mst.org.br

Este é um capítulo da série

Reconstrução

Inspiração em tempos de pandemia

Gerente de conteúdo: Daniel Tozzi

Editor-chefe: Douglas Vieira

Coordenadora de MOV: Ligia Carriel

Editoras: Carol Ito e Juliana Sayuri


Direção de arte: Rene Cardillo e Carol Malavolta

Design: Carol Malavolta


Produção executiva: Tita Tessler

Produção: Talita David


Reportagem: Alana Della Nina (Adriana Oliveira, Luciana Quintão e Telma Shiraishi), Eduardo Ribeiro (Lia Esperança), Livia Scatena (Eliane de Moura Martins e Socorro Leite), Natalia Guaratto (Daniel Souza)


Editor de redes sociais: Jean Louis Manzon

Editora assistente de redes sociais: Laís Montagnana

Gerente de comunidade: Rodolfo Gaioto


Fotos: Clara Gouveia/UOL (Socorro Leite); Divulgação (Adriana Oliveira e Daniel Souza); Estêvão Vivian/divulgação (Eliane de Moura Martins); Fernando Moraes/UOL (Luciana Quintão e Telma Shiraishi); Keiny Andrade/UOL (Lia Esperança)