Palco em casa

A internet foi uma ferramenta potente na busca por entretenimento e informação durante a quarentena

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Longe do público, artistas de diferentes linguagens precisaram se reinventar para continuar na ativa - seja pela sobrevivência, seja para ajudar os outros. Nesse contexto, foi criada a lei Aldir Blanc, que garante uma renda emergencial para trabalhadores da cultura e também para a manutenção dos espaços culturais brasileiros durante o período de fechamento das portas.

Mas foi a internet que ocupou o espaço do palco, com uma longa lista de lives memoráveis. Pelas redes, também entendemos que a ciência pode e deve ser pop - pesquisadores se tornaram trending topics em diversas plataformas, cativando milhões de seguidores, assim como outros profissionais que usaram a rede para lançar soluções criativas para lidarmos com nossa nova rotina.

Este é um capítulo da série

Reconstrução

Inspiração em tempos de pandemia

Vai ter show


A atriz e performer Yasmin Bispo criou uma versão virtual de seu espetáculo para ajudar artistas trans de São Paulo

"Quando a pandemia surgiu, eu estava na Mostra Internacional de Teatro, aqui em São Paulo. Fui me apresentar na Biblioteca Mário de Andrade, mas, faltando 20 minutos para começar, a Secretaria de Saúde disse que a gente não ia fazer." Foi assim, no susto, que a atriz e performer Yasmin Bispo, 43, percebeu os dias complicados que estavam por vir. Produtora e diretora do espetáculo Traveshow, formado por um elenco de artistas trans, ela se viu imediatamente responsável por criar meios para a própria sobrevivência e também das garotas que trabalhavam com ela.

"As meninas começaram a me ligar: 'Nossa, e agora? Com o Traveshow, eu estava conseguindo pagar meu aluguel, mês que vem não vai ter e eu vou para onde?' Eu disse: 'Meninas, vamos ver o que a gente faz'." Ao receber os apelos, Yasmin pensou na grande quantidade de lives dos primeiros momentos de quarentena e pensou ser este um caminho possível. Mas só serem vistas não resolveria o problema.

Sem a presença do público para pagar a entrada, como era no presencial, Yasmin criou uma vaquinha online. A iniciativa, somada à generosidade de alguns amigos, fez tudo correr bem. "Comecei pedindo a ajuda de amigos que pudessem pagar um plano de internet bom para essas meninas, porque algumas tinham uma rede horrível", diz. Todas conectadas, abriram as cortinas virtuais: "Eu fazia a minha performance dentro do Instagram do Traveshow, e cada menina fazia a sua performance na sua casa. E aí foi dando super certo".

"Meu sonho é que todas nós possamos viver com dignidade e sermos aquilo que quisermos ser, com mais dignidade e segurança."

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Mas, como artista, não bastava estar no ar e pagar as contas, sua preocupação era também garantir a qualidade do espetáculo, tanto do ponto de vista técnico, orientando as performers sobre como usar as câmeras do celular para um bom resultado nas lives, como de questões estéticas como o figurino. "As meninas diziam: 'Mas eu não tenho os figurinos que você tem'. Aí eu liguei para o [estilista] Dudu Bertholini, liguei para a [estilista] Vicenta Perrota, que disseram para não me preocupar, que mandariam um carro entregar e elas teriam figurinos bonitos", conta.

Na situação que estamos enfrentando, não só com a pandemia, mas sendo mal governados, está mais do que na hora de sermos nossas próprias instituições. A gente tem que unir nossas forças."

A arte vive


A cantora e pianista Loulou Callas acredita na arte como suporte emocional na quarentena

Loulou Callas é o nome artístico de Luiz Zeidan, 42, uma homenagem à designer britânica Loulou de la Falaise e à cantora americana Maria Callas. Ele é ilustrador e diretor de arte, com uma rotina de trabalho que já incorporava o home office antes da pandemia; ela é uma cantora e pianista paulistana, estrela do Cabaret de Cecília, espaço que foi fechado assim que começou o período de distanciamento social.

Mas Loulou não queria interromper suas apresentações e achava que a arte seria fundamental para atravessarmos esse momento com mais leveza, além de sentir que também seria uma maneira de lidar com a própria angústia durante a quarentena. Assim, começou a elaborar as apresentações em sua rede social, compostas de clássicos cantados ao piano. Para ela, era hora também de mostrar a potência da arte na vida das pessoas.

"Está sendo uma terapia tanto para mim quanto para as pessoas todas das redes sociais que me seguem. Isso foi muito revigorante, manteve a minha cabeça ocupada, e manteve a arte viva diante dessa situação tão difícil e da impossibilidade de fazer shows."

"Essa ação pode contribuir muito para o mundo pós-pandemia, porque a arte pode vir de qualquer pessoa, de qualquer lugar. Todas as pessoas são aptas a fazer arte, seja artes plásticas, seja artes cênicas, seja música, enfim, toda a gama gigante das artes. Acredito que a valorização do artista, de quem dispõe de um tempo oferecendo entretenimento para as pessoas, vai mudar. A percepção do público sobre essas pessoas vai ser muito diferente depois da pandemia."

A ideia de cantar e tocar nas redes sociais veio justamente como uma ideia para manter a minha cabeça ocupada e também entreter. Levar para as pessoas um pouco de esperança nesse momento tão difícil de isolamento"

COMO AJUDAR

Instagram: @louloucallas

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A lista que importa


O ator Caco Ciocler encontrou uma forma de mobilizar grandes empresas para ajudar quem mais precisa

O ator e diretor Caco Ciocler, 49, é o nome por trás da Lista Fortes Brasil, iniciativa que criou no começo da pandemia para estimular que empresas privadas doem 1% do lucro líquido para ações que busquem amenizar os efeitos da Covid-19 em todas as frentes: construção de hospitais, compra de equipamentos médicos, produção de álcool gel, distribuição de alimentos e renda, implementação de logística, entre outras ações. Como recompensa, as empresas têm seus nomes divulgados em uma lista que as posiciona como modelos a serem seguidos na forma de gerenciar os recursos.

"Estávamos no início da pandemia e eu estava, de dentro de casa, tentando resolver alguns problemas coletivos. Foi quando recebi dois vídeos de empresários com um discurso que eu julguei bastante agressivo, em que exigiam o retorno imediato dos seus funcionários em nome da economia."

Assim, pensando no faturamento dessas empresas, foi que o ator teve ideia da ação "inspirada" na lista divulgada anualmente pela revista norte-americana Forbes, que dá prestígio a empresas que acumulam grandes fortunas. A provocação teve efeito e mais de dez grandes empresas aderiram rapidamente, indicando a doação de parte do lucro. Caco também mobilizou dezenas de outros artistas, que ajudaram na divulgação do projeto.

Fui pesquisar o lucro líquido de um ano dessas duas empresas que fizeram o discurso agressivo e descobri que existia uma maneira mais inteligente e solidária de ajudar a população brasileira. Assim nasceu a Lista Fortes Brasil"

Não somos números


O artista Edson Pavoni criou um memorial virtual poético para homenagear vítimas da Covid-19

Os números da pandemia do novo coronavírus no Brasil começavam a subir de modo acelerado em abril deste ano quando o artista plástico Edson Pavoni, 36, se incomodou com a forma como a mídia atualizava diariamente o número de vítimas. Para ele, era muito ruim perceber que muito pouco se ouvia sobre as pessoas por trás dos números. "Senti que estávamos perdendo a sensibilidade, pois se tratam de vidas, perdas muito mais profundas do que uma mera contabilização", explica.

Com esse pensamento, no dia 30 de abril, com a ajuda de amigos e de uma rede de centenas de voluntários (que ele prefere não quantificar, para não transformar em mais um número da pandemia), Edson lançou o projeto Inumeráveis, um memorial virtual em homenagem a todas as vidas levadas pela Covid-19. "Não há quem goste de ser número. Gente merece existir em prosa", acrescenta Edson, com o mesmo tom poético que caracteriza o memorial.

Edson também conta que outro objetivo importante do projeto é estimular que as pessoas se conectem mais umas com as outras e também consigo mesmas. "Talvez este seja um aspecto positivo que podemos extrair desse período tão triste: percebermos que podemos parar um pouco e repensar a maneira como conduzimos nossas vidas", diz. Com a esperança de que essa reflexão possa ser perpetuada, o artista, agora, dialoga com o poder público com o intuito de transformar o Inumeráveis em um memorial físico na cidade de São Paulo.

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Toda pessoa é única, com sua história repleta de momentos, valores, emoções. Mais do que celebrar as vidas dessas vítimas, o Inumeráveis também tem servido para confortar um pouco a dor dos amigos e familiares que ficaram"

COMO AJUDAR

Site: inumeraveis.com.br/

#MinhaHistóriaECOA


"Minha função era fazer palestras em vários lugares na capital e interior de São Paulo. Precisava sair muito cedo de casa, chegava tarde e, como mãe, ficava preocupada com as minhas filhas adolescentes em casa. A empresa em que trabalho começou a oferecer palestras virtualmente e fiquei muito feliz, porque ganhei aquilo que a gente mais reclama que falta: tempo. Comecei a praticar atividade física, meditar e consegui equilibrar melhor a minha vida."


Sílvia Barnabé, 49, coach, Franco da Rocha (SP)

Tudo é possível


Fernanda Bianchini reinventou a forma como ensina ballet para alunos com deficiência visual

Há 25 anos à frente da associação que leva seu nome e abriga a Cia. Ballet de Cegos, a fisioterapeuta Fernanda Bianchini, 42, usa a dança para transformar a vida de pessoas com deficiências, a maioria delas, visual, em São Paulo. Para isso, coloca em prática uma metodologia de ensino de ballet que desenvolveu tendo como base o toque. Com a pandemia, ela teria que parar, mas reinventou suas práticas para não deixar de acompanhar seus alunos.

"Quando começou a pandemia, a única coisa que eu pensava era em como adaptar a metodologia para o modo online. A maioria dos alunos são do grupo de risco e não queríamos deixar de oferecer uma atividade, ainda que em casa, para que a saúde física e emocional deles fossem preservadas", conta Fernanda, que adaptou as aulas gravando vídeos e realizando videochamadas para orientar os movimentos dos alunos. "Foi um sucesso."

"Nós da Associação Fernanda Bianchini nos reinventamos nesse momento tão desafiador, com aulas online para os nossos 400 alunos. Tivemos mais 120 alunos novos em outros estados brasileiros e também em outros países. É o ballet além das fronteiras."

Os alunos que tiveram aula online mostraram, mais uma vez, que tudo é possível quando se tem força de vontade e quando se acredita em um sonho"

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Contra a desinformação


A microbiologista Natalia Pasternak Taschner usa o TikTok para combater as fake news sobre a pandemia

No ano em que uma pandemia fez muita gente tentar entender conceitos como taxa de transmissão de vírus e as fases de produção de uma vacina, ao mesmo tempo em que outras desacreditaram a ciência e a gravidade da situação, o papel de Natalia Pasternak Taschner como popularizadora da ciência tornou-se mais importante do que nunca.

Natalia atua em múltiplas frentes como divulgadora científica, entre as quais estão um blog, colunas na imprensa e a cofundação do Instituto Questão de Ciência. Na pandemia, ela incluiu outra atividade, na rede social TikTok, onde faz parte de um grupo de cientistas de todo o mundo que informa as pessoas sobre as vacinas em desenvolvimento contra o novo coronavírus. A iniciativa, chamada Projeto Halo, é da Organização das Nações Unidas (ONU).

Na visão da cientista, a pandemia deixa alguns aprendizados e um deles é que repetir informação nunca é demais. E o ano de 2020 trouxe ainda outro desafio enorme: comunicar as incertezas que fazem parte do próprio processo científico. "As pseudociências, além de trazerem mentiras, trazem certezas, que são mais reconfortantes", diz. "Porque elas dizem: 'É só uma gripezinha'. Ou: 'Toma aqui a cloroquina que você está protegido'."

E, para combater a desinformação, ela diz, não basta ter o conhecimento técnico. É preciso ter empatia também e evitar qualquer julgamento moral. "Se alguém diz: 'Eu tenho medo que a vacina de RNA' altere meu genoma, você não pode falar que isso é ridículo. A pessoa não tem obrigação de saber como uma vacina de RNA funciona."

É necessário acolher as dúvidas como legítimas, com o cuidado de legitimar os medos. A gente tem que levar a sério as dúvidas das pessoas e informar para que façam escolhas conscientes"

Pelo telefone


Morando nos Estados Unidos, a médica Camila Maciel de Oliveira usou o celular para mobilizar a cidade de Baependi (MG) no combate ao coronavírus

"Tudo o que for para o empoderamento de comunidades é a missão que move meus pés e enche meu coração de esperança todos os dias", desabafa a médica Camila Maciel de Oliveira. Endocrinologista e pós-doutora em medicina preventiva, ela coordenou a mobilização de Baependi (MG), sua cidade natal, no combate à pandemia, mesmo morando atualmente nos Estados Unidos, onde é pesquisadora visitante do Massachusetts Institute of Technology (MIT).

Camila recorreu ao WhatsApp para articular lideranças da cidade, como padres, pastores e agentes comunitários, e ajudou a formar um comitê que pressionou as autoridades locais a impor o fechamento de estradas e estabelecimentos e também a criar formas alternativas de geração de renda. Tendo o app de troca de mensagens como base de operações, ela organizou suas iniciativas em duas frentes, ou melhor, dois grupos de WhatsApp, criados para disponibilizar áudios e vídeos informativos aos cidadãos baependianos.

Os vídeos do boletim "Corona News" eram gravados duas ou três vezes por dia, na sala de Camila, que vestia jaleco e pijama. "Eu mesma fazia algumas poucas edições e a distribuição. Minha irmã caçula me amparava no preparo do material para a divulgação, e minha outra irmã assumiu a coordenação do outro grupo, destinado ao Comitê de Crise, oficializado na cidade uma semana depois de iniciarmos a atividade", conta. E o grupo criado para este comitê não se restringiu aos limites da cidade.

"Acreditava que uma forma de proteger nossas cidades era protegendo nossos vizinhos, compartilhando informação e nos colocando à disposição para qualquer auxílio. Percebemos a influência de peso, especialmente no formato de áudios, para a disseminação de informação em cidades pequenas do interior."

Minha missão era o empoderamento da comunidade frente à pandemia, e, em 10 dias, eles já estavam prontos para assumir o controle da situação, sem a minha presença"

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Delivery de poesia


A produtora cultural Diane Padial espalhou o trabalho de autores da periferia pela cidade de São Paulo

A produtora cultural Diane Padial é idealizadora e organizadora, ao lado de Suzi Soares, da Felizs - Feira Literária da Zona Sul, no Campo Limpo, que realizou neste ano a sua 6ª edição. Mas, com a pandemia, a programação, que inclui shows e rodas de conversas com autores, foi quase que integralmente convertida em lives. Quase, porque uma das ações da agenda ganhou as ruas antes mesmo de setembro, quando se deu o evento online. Foi a Poesia Delivery.

A preocupação dela era aliviar a situação estressante e pouco inspiradora que afetava a todas as pessoas nas cidades, e também levar arte a quem não poderia parar de trabalhar e continuaria pelas ruas durante o período de isolamento. O meio para isso foi recorrer a um profissional que já estava acudindo a todos em necessidades urgentes: os motoboys.

"Quem circula hoje durante a pandemia? O motoboy. Então, criamos a Poesia Delivery para circular pelas ruas, espalhando poesia por todo canto."

Na iniciativa, cinco motoboys distribuíram poemas de cinco autores periféricos nos faróis, estacionamentos, elevadores, portões e demais caminhos percorridos pelos entregadores no dia a dia. Em novembro, a Poesia Delivery voltou às ruas, agora com dez ciclistas entregadores, em parceria com o projeto Bike Arte Gira.

A poesia é o lugar do encantamento. Então, a circulação delas pelas ruas surpreende, encanta. Vamos melhorar o mundo com muito mais poesia. O lugar da poesia é na rua"

COMO AJUDAR

Site: www.felizs.com.br/

Este é um capítulo da série

Reconstrução

Inspiração em tempos de pandemia

Gerente de conteúdo: Daniel Tozzi

Editor-chefe: Douglas Vieira

Coordenadora de MOV: Ligia Carriel

Editoras: Carol Ito e Juliana Sayuri


Direção de arte: Rene Cardillo e Carol Malavolta

Design: Carol Malavolta


Produção executiva: Tita Tessler

Produção: Talita David


Reportagem: Carol Ito (Caco Ciocler, Fernanda Bianchini), Eduardo Ribeiro (Camila Maciel de Oliveira), Gilberto Yoshinaga (Edson Pavoni), Juliana Sayuri (Diane Padial, Loulou Callas), Larissa Linder (Natalia Pasternak), Natalia Guaratto (Yasmin Bispo)


Editor de redes sociais: Jean Louis Manzon

Editora assistente de redes sociais: Laís Montagnana

Community Manager: Rodolfo Gaioto


Fotos: Arquivo pessoal (Camila Maciel de Oliveira, Natalia Pasternak , Taschner), Dessa Pires/divulgação (Caco Ciocler), Fernando Moraes/UOL (Diane PadialEdson Pavoni), Rodrigo Ferreira e Ugo Soares/UOL (Yasmin Bispo), Zanone Fraissat/Folhapress (Loulou Callas), Angela Rezé/divulgação (Fernanda Bianchini),