Lute como uma garota

A pandemia escancarou (ainda mais) a violência doméstica, mas também fez florescer uma grande rede de apoio

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Foi nos ombros das mulheres que caíram pesos da quarentena: cuidar da casa, dos filhos e do home office, cozinhar, lavar, trabalhar e, em meio a tudo isso, em muitos casos, tentar sobreviver a situações extremas como violência doméstica, depressão e burnout. Elas representam a maioria dos trabalhos de assistência, remunerados e não remunerados, e 70% da força de trabalho da área da saúde em todo o mundo.

Além de estarem mais expostas à doença, são mais vulneráveis ao desemprego, à violência de gênero e à falta de proteção social, de acordo com informações da ONU Mulheres, que já nos primeiros meses de enfrentamento lançou um alerta sobre o impacto do isolamento social, agravando uma série de problemas pré-pandemia para mulheres do mundo todo. Mas elas resistiram: para ajudar umas às outras, criaram projetos de acolhimento psicológico, assistência jurídica, campanhas solidárias e ações para reinserção no mercado.

Este é um capítulo da série

Reconstrução

Inspiração em tempos de pandemia

Relicarium


A antropóloga Debora Diniz reflete sobre o papel feminino no enfrentamento da pandemia e homenageia mulheres mortas pela doença

Pensando nas milhares de brasileiras mortas pela Covid-19, a antropóloga Debora Diniz lançou no Instagram a página @reliquia.rum (em alusão à palavra relicário em latim), onde publica diariamente textos e imagens que formam pequenas e delicadas biografias.

O texto é criado por Debora a partir de notícias sobre mulheres comuns, anônimas em sua maioria, garimpadas com a ajuda de uma historiadora voluntária. As ilustrações são feitas pelo artista visual Ramon Navarro, que faz colagens sobre fotografias antigas de brasileiras igualmente anônimas. Entre março e novembro, quase 250 mulheres foram retratadas.

"A ideia é fazer a passagem dos números para uma imaginação sobre pessoas. Imaginá-las pelos resquícios da memória que escapam das notícias, transformar os números em biografias e, assim, permitir viver essa pandemia como um luto coletivo. Esse é um ato político", explica Debora, defendendo que, se as mulheres são essenciais para o enfrentamento da crise, os valores feministas podem apontar caminhos para um futuro mais justo e equilibrado para todos.

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"Essa pandemia escancarou como a condição humana é dependente do cuidado e dependente essencialmente das mulheres. Não há resposta à pandemia que venha só das abstrações da economia. Ela também está no mundo miúdo, da casa e do cuidado."

"Momentos de grande sofrimento coletivo, como é o caso da pandemia, são momentos de forte aprendizado ético. O mundo pós-pandemia não pode ter nada de novo normal. A minha esperança é que ele seja transformado pelos valores feministas da igualdade, da justiça e do cuidado."

O mundo pós-pandemia precisa ter no centro valores que descrevo como feministas, que reconhecem a importância do cuidado, da interdependência e da igualdade, como forma de proteger a todos nós diante de uma emergência sanitária"

COMO AJUDAR

Instagram: @reliquia.rum

Cuidando de quem cuida


Vivian Abukater, sócia da Maternativa, promove o trabalho de mães durante a pandemia

Com a pandemia da Covid-19, muitas mulheres se viram em casa, trabalhando em esquema de home office, tendo de cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos, tudo isso junto. O período sobrecarregou ainda mais as mães, que viram o trabalho que paga as contas e o não remunerado dividindo o mesmo espaço.

"Nós temos que cuidar de quem cuida das pessoas. Quando você vai a um hospital, por exemplo, quem são os acompanhantes? Mulheres. São elas que estão sempre lá e que precisam de apoio em momentos sensíveis como este que estamos vivendo. Quanto mais nos mobilizamos, mais conseguimos fazer um movimento virtuoso em prol das mães", diz Vivian Abukater, mãe de dois meninos, de 9 e 5 anos, que trabalha para promover o trabalho de outras mães.

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Ela é sócia da startup social Maternativa, criada em 2015, com o propósito de formar uma rede de contato e apoio para mulheres discutirem sobre trabalho e maternidade. Hoje, a startup conta com mais de mil mães cadastradas em sua plataforma, que funciona como uma vitrine virtual de produtos e serviços feitos por elas.

Quando for comprar algo, é muito importante lembrar daquela mãe que é uma pequena empreendedora. Apoiando essa mulher, você está dando força ao bem-estar de uma família, afinal, muitas delas são sozinhas e únicas responsáveis pelo sustento dos filhos"

COMO AJUDAR
Instagram: @maternativa
Facebook: @maternativabr
Site: https://compredasmaes.com.br/

#MinhaHistóriaECOA


"No começo de 2020, eu trabalhava em uma boa empresa, mas me sentia muito infeliz. Em junho, fui convidada para trabalhar em uma plataforma de educação, que tem como foco incentivar a liderança feminina no mercado de trabalho. Larguei tudo e abracei o projeto. A pandemia facilitou o encontro digital, fez com que a gente conseguisse impactar muitas mulheres, até mesmo de outros países."


Vivien Uhlmann, 28, empreendedora, Curitiba (PR)

Vidas negras importam


Jaciana Melquíades conta como conseguiu manter seu negócio durante a pandemia graças a um desabafo no Twitter

Enquanto via sua loja rumar para a falência com a quarentena e o fechamento do comércio, Jaciana Melquíades, 36, resolveu fazer um desabafo no Twitter e viu sua sorte mudar - com a ajuda de muita gente. É de Jaciana a Era uma Vez o Mundo, que ela conta ser a primeira loja exclusiva de bonecas negras do país, inaugurada em fevereiro de 2019. A marca tinha duas lojas físicas, uma em Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro, e outra em Madureira, na zona norte, e, em março, com as portas fechadas, ela viu as vendas despencarem e as parcerias com escolas nas quais promove oficinas serem canceladas.

"Comecei a empreender como a grande maioria de mulheres pretas que são empreendedoras no Brasil: por necessidade. Nada dessas coisas que narram o faturamento de um milhão no primeiro ano de funcionamento. E como quase toda empreendedora igual a mim, estou quebrando", escreveu ela, em um depoimento emocionado no Twitter. Com a repercussão do post, Jaciana conseguiu vender mais de 100 bonecas no início da pandemia, garantindo o próprio sustento e de mais cinco famílias que dependem da renda gerada pela empresa.

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"A Era uma Vez um Mundo é uma empresa que cria brinquedos e atividades educativas referenciadas em crianças negras. Com os nossos brinquedos, a gente promove a construção de uma história múltipla, plural. Brincar é poder, é criar futuros possíveis e potentes."

A gente trava, emperra, surta, mas respira e volta. Sem romantismo, essa é a realidade de quem empreende por necessidade! 'Encerrar as operações' não é opção quando tudo o que a gente tem é o que a gente faz"

COMO AJUDAR

Instagram: @eraumavezomundo

Facebook: @eraumavezomundo

WhatsApp: (21) 92002-1906

Site: www.eraumavezomundo.com.br

Uma mão lava a outra


Andréa Wahlbrink montou uma fábrica de sabão para criar renda para mulheres durante a pandemia

Militante do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), em Caxias do Sul (RS), a pedagoga Andréa Wahlbrink Padilha da Silva já estava bastante preocupada com o desemprego crescente no Brasil desde o ano passado. No planejamento para 2020, ações vinham sendo pensadas para minimizar o impacto da crise em famílias mais vulneráveis.

Veio a pandemia. E o que já era um problema sério, só se agigantou. Andréa conta que, no começo, o foco foi na solidariedade: distribuição de cestas básicas e de produtos de higiene e conscientização para que as pessoas elegíveis se cadastrassem no programa de auxílio emergencial do governo federal.

Então houve a sacada: se uma questão fundamental para combater o vírus é lavar bem as mãos, por que não montar um fábrica de sabão? Nasceu a Saboaria Popular Las Margaritas. "É um trabalho autogerido, auto-organizado e que foge da lógica formal capitalista", explica. "Uma teia de relações com profissionais específicos de diversas áreas assessora o trabalho. Do resgate do saber popular, ancestral, vêm as receitas." Atualmente, 12 mulheres participam do projeto.

A pandemia agudizou uma crise que é inerente ao próprio capitalismo. Fica a necessidade de se pensar cada vez mais no trabalho como uma outra dimensão, que não seja da exploração, da apropriação e da opressão"

COMO AJUDAR

Instagram: @lasmargaritas.saboaria

Facebook: @lasmargaritas.saboaria20

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Pelas mulheres trans


Vallery Maria trabalha para que mulheres trans e travestis de Manaus não passem fome durante a pandemia

Cuidar de mulheres trans e travestis que vivem em situação de vulnerabilidade é a missão de Vallery Maria, 44, mulher trans e professora de Manaus (AM). Em 2019, ela fundou o projeto TRANSformar, que, durante a pandemia, realizou abordagens com mulheres trans e travestis que trabalham com sexo, levando informações sobre prevenção de doenças e kits de higiene pessoal. Além disso, conseguiu doações de cestas básicas para alimentar 30 pessoas trans durante três meses.

"O projeto TRANSformar, através de suas ações de assistência social, conseguiu, durante a pandemia, evitar que muitas dessas pessoas passassem fome. Nós fizemos algumas alianças com instituições e recebemos cestas básicas para fazer essas doações."

Muitas trans e travestis vivem em total vulnerabilidade social, econômica e familiar. O que me motiva é poder ver o sorriso no rosto delas. Trabalho para que tenham uma vida digna e saibam dos seus direitos"

Linha direta


A promotora de justiça Gabriela Manssur criou o projeto Justiceiras para atender mulheres vítimas de violência durante a pandemia

Referência na defesa da mulher, a promotora Gabriela Manssur integra diversas iniciativas do Poder Judiciário voltadas ao atendimento de mulheres vítimas de violência. Com esse foco, Gabriela mantém, para além das atribuições de seu cargo, uma rotina atenta a novas complexidades, criando quando necessário novas iniciativas e abordagens para o problema, como o Tem Saída, que, desde 2014, capacita e insere mulheres vítimas de violência no mercado de trabalho. Durante a pandemia, ela entendeu imediatamente a dificuldade que as mulheres teriam para denunciar seus agressores e imediatamente começou a articular uma resposta.

"Foi então que surgiu a ideia de criar o projeto Justiceiras, um grupo de voluntariado que atende a mulher pelo WhatsApp. Forma-se um grupo multidisciplinar de acolhimento, ajuda e proteção, em que essa mulher é atendida por psicóloga, assistente social, advogada, melhor amiga e médica, se necessário."

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"Como ajudar aquela mulher que sofre violência dentro de casa se a recomendação é ficar em casa? Para quem ela iria pedir ajuda?", reflete Gabriela, sobre a criação do projeto, que conta com 4 mil voluntárias e atendeu mais de 2.800 mulheres durante a pandemia. "Foram muitos casos gravíssimos que chegaram e continuam chegando no projeto Justiceiras. Abuso sexual, violência doméstica, muito abuso piscológico, vários pedidos de medidas protetivas. Todas as mulheres foram atendidas, encaminhadas para os serviços locais e para as autoridades competentes, até prisões nós conseguimos promover em flagrante."

É um projeto criado durante a pandemia, mas que veio para ficar, demonstrando que a mulher brasileira precisa de um acesso rápido, fácil e eficiente ao sistema de justiça"

COMO AJUDAR

Instagram: @justiceirasoficial

WhatsApp: (11) 99639-1212

Site: justiceiras.org.br

Silêncio ensurdecedor


A cineasta Liss Fernandez articulou vídeo do coletivo mulheres que orienta vítimas de violência doméstica sobre canais de denúncia

A chilena Liss Fernandez, 33, trabalha com cinema há 12 anos e há 7 está radicada no Brasil. Fotógrafa e cinegrafista, ela mora em Brasilia, onde faz parte do coletivo Movielas, que reúne profissionais de áreas técnicas da produção cinematográfica, da câmera e do som, baseadas na capital brasileira. Atentas às estatísticas crescentes de violência de gênero durante a pandemia, elas decidiram produzir algum material audiovisual para dar apoio às vítimas. O resultado foi o Vídeo silencioso, publicado no YouTube e viralizado em todas as redes sociais, em que as integrantes do projeto seguram cartazes com informações a respeito dos canais disponíveis no Distrito Federal para mulheres denunciarem seus agressores.

"A ideia surgiu porque a gente assistiu a um vídeo feito no Chile e achamos muito necessário replicar essa ação aqui no Brasil. Entramos em contato com as mulheres do Chile e elas autorizaram a gente a fazer o mesmo aqui. Então, as mulheres do coletivo começaram a tirar fotos com cartazes, com as informaçoes dos lugares onde você poderia ligar aqui no Distrito Federal."

Durante a pandemia, o indíce de violência doméstica aumentou muito, e não foi só no Brasil, foi no mundo inteiro. É por isso que a gente decidiu fazer um vídeo da forma mais discreta possível, para conseguir chegar nas mulheres que estavam precisando dessas informações"

COMO AJUDAR

Instagram: @movielas

Site: movielas.com.br

Colher cheia


Renata Albertim, fundadora do Mete a Colher, ampliou sua rede de apoio e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica

Vendo os índices de violência doméstica dispararem em países com medidas de isolamento social, Renata Albertim nem precisou esperar o isolamento social ser decretado no Brasil para agir. Certa de que a vida das brasileiras que iriam passar a quarentena com parceiros agressores estava em perigo, ela bolou um plano para ajudá-las: organizou as contas do projeto Mete a Colher, plataforma de atendimento a vítimas de relacionamentos abusivos, que funciona desde 2016, para contratar mais funcionários e mapear delegacias, centros de referência e outras iniciativas de assistência a mulheres em todo o Brasil.

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De abril a agosto, 56 mulheres foram atendidas pelo Mete a Colher, em 11 estados. Para 39% delas, as agressões aumentaram durante o período de confinamento com o companheiro. "Reforçamos o atendimento nos nossos canais e também passamos a criar mais conteúdo informativo", conta a empreendedora social de 32 anos, que mora em Recife (PE). "A gente acredita que a porta de saída da violência contra a mulher é fazer com que ela acesse a rede de enfrentamento. Durante a pandemia, nosso trabalho foi encontrar táticas para atuar mais rápido e conseguir levar o maior número de vítimas até a política pública", conta.

Divulgado em outubro, o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública trouxe números que dão a real dimensão sobre os impactos da Covid-19 nos índices de violência contra mulher. Foram 648 feminicídios contabilizados, um aumento de 1,9% em relação aos seis primeiros meses de 2019. Para Renata, isso mostra a urgência de abandonarmos a máxima "em briga de marido e mulher ninguém mete a colher".

A gente precisa disso, de gente disposta a meter a colher, gente nos condomínios, nas vizinhanças, gente que esteja atenta e ligada nas coisas"

COMO AJUDAR

Instagram: @appmeteacolher

Facebook: @appmeteacolher

Site: meteacolher.org

Este é um capítulo da série

Reconstrução

Inspiração em tempos de pandemia

Publicado em 1 de dezembro de 2020


Gerente de conteúdo: Daniel Tozzi

Editor-chefe: Douglas Vieira

Coordenadora de MOV: Ligia Carriel

Editoras: Carol Ito e Juliana Sayuri


Direção de arte: Rene Cardillo e Carol Malavolta

Design: Carol Malavolta


Produção executiva: Tita Tessler

Produção: Talita David


Reportagem: Carol Ito (Débora Diniz), Edison Veiga (Andréa Wahlbrink), Juliana Sayuri (Jaciana Melquíades, Liss Fernandez), Lívia Scatena (Vivian Abukater), Natalia Guaratto (Renata Albertim), Talita David (Gabriela Manssur, Vallery Souza)


Editor de redes sociais: Jean-Louis Manzon

Editora assistente de redes sociais: Laís Montagnana

Community Manager: Rodolfo Gaioto


Fotos: Arquivo pessoal (Andréa Wahlbrink, Debora Diniz, Liss Fernández e Renata Albertim); Bruno Kelly/UOL (Vallery Souza); divulgação (Gabriela Manssur); Fernando Moraes/UOL (Vivian Abukater)