Vim, vi e venci

Histórias de quem esteve entre os mais de 7 milhões de infectados no Brasil e conseguiu superar a doença

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Superar uma doença como a Covid-19, que provocou mais de 1,6 milhão de mortes no mundo, é motivo para comemorar — já é uma vitória conseguir respirar em um mundo tão fragmentado e confuso, que tenta enfrentar um vírus tão sorrateiro quanto o Sars-CoV-2.

Receber alta pode ser uma conquista individual, mas também está entrelaçada à malha que se formou, ponto por ponto, na resposta à pandemia: da linha de frente aos afetos, do arroz no prato à espera dos abraços quando tudo isso passar. Cada vitória individual é também um alento ao coletivo. Em frente.

Este é um capítulo da série

Reconstrução

Inspiração em tempos de pandemia

Recomeço


A professora Cristiane Lopes teve que se reinventar depois de perder a voz como consequência da Covid-19

Para uma professora, profissional que tem a voz como instrumento de trabalho, perder a capacidade de falar é uma condição desesperadora. Foi o que aconteceu com Cristiane Lopes, contaminada pelo coronavírus em maio. Mesmo sem precisar ser internada, a Covid-19 lhe deixou como sequela uma paralisia de prega vocal que a impediu de falar por quase dois meses.

"No início, tive uma forte dor de garganta, febre e minha voz simplesmente sumiu. O médico não podia garantir que minha voz voltaria 100%. Fui encaminhada para o tratamento com fonoaudiologia e bateu o desespero. Para um professor, não falar é como não existir", diz a professora de língua portuguesa, que trabalha na EE Alberto Torres, na zona oeste de São Paulo.

Durante o período sem voz, ela precisou se reinventar para continuar com as aulas remotas. "Eu participava das reuniões e interagia com os alunos digitando o tempo inteiro. Não deixei de trabalhar um dia sequer", conta. Cristiane também desenvolveu junto aos estudantes um painel virtual com dicas de estudo e troca de experiências durante a pandemia.

"Ficou a lição. Muita garra, muita fé, um suporte incondicional dos meus alunos, professores, amigos e família. Esse vírus não é brincadeira, mas foi um ano de grandes aprendizados e grande superação."

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Tive apoio incondicional dos alunos durante a minha recuperação. A pandemia nos uniu ainda mais"

A força mora ao lado


Com a ajuda de vizinhos, Gilson Lima se recupera depois de quase um mês internado

Depois de 26 dias internado por Covid-19, dez deles entubado, duas paradas cardíacas, Gilson Lima, 41, saiu do hospital público na zona leste de São Paulo e foi para sua casa, no bairro Cidade Tiradentes. Passado um mês, com o fim do período de licença remunerada, ele precisou retornar ao trabalho de porteiro. Neste momento, ele acreditava que já havia deixado o pior para trás. Mas não.

Logo que voltou à rotina, Gilson sentiu dores no corpo e, em seguida, surgiu uma grande dificuldade para respirar, que ficava rapidamente mais intensa. "Saí de casa para o hospital praticamente morto", conta. Começou ali seu segundo período de internação. Gilson estava agora com pneumonia e suspeita de ter contraído Covid-19 novamente, embora dessa vez o teste tenha dado negativo.

Foram mais 47 dias no hospital, sete deles entubado. "Eu ficava ali, quietinho, vendo as pessoas morrerem toda hora. Eu achei que também ia morrer", lembra. Ter alta e voltar a ver o sol novamente "foi como sair de uma prisão", resume, otimista, ainda que tenha que lidar com sequelas de todo esse tempo lutando contra a doença. Gilson precisou reaprender a andar e a comer, ao mesmo tempo que lidava com uma arritmia cardíaca e uma traqueostomia.

Hoje, além de se dedicar a recuperação, outra preocupação de Gilson é a aprovação da licença concedida pelo INSS para que possa ter renda. Sem nenhum familiar na cidade — os pais vivem na sua terra natal, Maceió —, ele depende da ajuda dos vizinhos e amigos, tanto para a recuperação, quanto para o auxílio material.

Às vezes, eu fico triste aqui sozinho, olhando para as paredes, tenho vontade de chorar. Mas aí eu abro a porta de casa, vejo que tem gente para me ajudar. E passa", diz. "Passei a dar mais valor à vida e às pessoas, eu melhorei."

Venci a Covid-19


José Marques Sobrinho passou 25 dias entubado e, enquanto trabalha em sua recuperação, torce pela eficácia da vacina

Um dos médicos que cuidava de José Marques Sobrinho, internado com Covid-19, pediu que a família rezasse. Aparentemente, não havia mais o que fazer. Aos 62 anos, depois de passar 25 dias entubado em um hospital público na zona leste da capital paulista, as complicações se sucediam: sofreu parada cardíaca por seis minutos, contaminou-se com uma bactéria resistente e precisou de hemodiálise.

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Tudo começou em junho, quando José teve sintomas de gripe. Como não melhorava, fez o teste e deu positivo. Naquele dia, sentiu falta de ar e, à noite, o SAMU precisou ser chamado. Foi imediatamente internado e entubado. Ao sair da entubação e da sedação, não conseguia se recordar do nome do presidente do Brasil, mas tinha uma certeza: a de que ia morrer. "O oxigênio já estava no nível máximo e eu tinha falta de ar", conta.

Com acesso ao telefone celular depois mais de um mês de internação, José pediu a familiares e amigos que rezassem por ele no dia seguinte, ao meio-dia. "Não sei de onde tirei isso de rezar ao meio-dia, mas foi o que me veio à cabeça." Ele conta que foram milhares de compartilhamentos nas redes sociais. "Muita gente orou por mim, e naquela hora eu senti uma energia grande."

Cerca de duas semanas mais tarde, veio a alta. A mulher, os dois filhos e os três netos o receberam com música na porta do hospital, tudo registrado em um vídeo, orgulhosamente compartilhado com a reportagem. "Chorei igual criança", conta ele. Nas mãos de José, uma folha de papel dizia: "Venci a Covid".

Foram mais dois meses de cama, agora em casa, com a esposa se dedicando aos cuidados em tempo integral. A voz já não é a mesma, nem a energia, os movimentos da mão esquerda não voltaram e as pernas estão fracas. Segundo ele, as sequelas são tão ruins quanto a própria doença. "Antes, eu me considerava com 25 anos, agora, com 70". Mas não pensa nisso, apenas segue em frente, com uma fé que marca suas palavras. E torce para que a doença seja controlada e ninguém mais passe por isso.

Meu maior desejo para 2021 é que a vacina seja eficaz no mundo todo"

Um passo por vez


Após 103 dias internado e duas paradas cardiorrespiratórias, Airton Carlos Lauriano dos Santos teve alta e está reaprendendo a andar

Airton Carlos Lauriano dos Santos, 66, está caminhando. "Eu estou vivo", diz ele, que vem valorizando cada dia de sua vida após a montanha-russa que enfrentou com o coronavírus. Em 6 de abril, Airton procurou atendimento médico para tratar o que imaginava ser uma simples gripe. Não era. O aposentado foi imediatamente internado no Hospital Santa Ana, em São Caetano do Sul, no ABC paulista, pois já estava com 60% dos pulmões comprometidos.

Airton foi o primeiro paciente com diagnóstico positivo para Covid-19 no hospital. Também se tornou o paciente com a mais longa internação da história da casa: foram 103 dias, 49 deles na UTI — 28 entubado e sob sedativos. No meio do caminho, o vírus atacou outros órgãos além dos pulmões, como coração e rins: ele teve duas paradas cardiorrespiratórias, foi reanimado e também precisou de sessões de hemodiálise.

Em 29 de maio, Airton acordou sem saber o que tinha acontecido. Pouco a pouco, com o tratamento humanizado da equipe médica, a mente foi melhorando, assim como o corpo. "Desde que abri os olhos, tenho a satisfação de estar vivo. Poder conversar com meus familiares, meus amigos", lembra ele. Em 17 de julho, o paulista finalmente teve alta. Saiu do hospital de cadeira de rodas, cerca de 40 kg mais magro, com sequelas neurológicas e dedos do pé direito com feridas. Meses após a alta, continua fazendo fisioterapia "forte", como ele diz.

Hoje, Airton anda com andador e continua a fisioterapia para dar os próximos passos. Um de cada vez

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O vírus não acabou, está por aí. A gente deve fazer sempre o melhor: usar máscara e estar preparado, porque as coisas podem acontecer a qualquer momento. O que acontece pode durar um segundo e, pra gente se restabelecer, pode levar uma década"

Encontro com a vida


Ana Júlia da Silva Lopes descobriu estar com Covid-19 com 30 semanas de gestação e levou 17 dias para pegar sua filha no colo

Foi preciso esperar 17 dias para que a vendedora Ana Júlia da Silva Lopes, 35, pudesse pegar sua primeira filha no colo. Com 30 semanas de gestação, ela descobriu estar com Covid-19. Oito dias depois, complicações respiratórias colocaram sua vida em risco e forçaram a realização de um parto prematuro, realizado no dia 13 de julho.

"Fomos separadas porque a Maria Júlia nasceu saudável, sem o coronavírus, mas eu ainda estava me recuperando na UTI", conta Ana Júlia. A ansiedade pelo encontro com sua filha foi amenizada por fotos e sessões de videoconferência providenciadas pela equipe de enfermagem. O primeiro contato físico dos pais com a bebê só se deu em 9 de agosto, Dia dos Pais. "Foi o melhor presente que eu poderia receber", derrete-se o analista de sistemas Thiago Henrique Moraes Lopes, 34, ao se lembrar do emocionante encontro.

O casal de Tanabi (SP) acredita ter sido transformado pela experiência. "Meus pensamentos mudaram muito com relação ao que realmente importa na vida. Acho que me tornei menos frio para demonstrar sentimentos e passei a dar mais valor a coisas simples que o dinheiro não pode comprar", reflete Thiago. "Sou bem religiosa e acredito que Deus sempre tem algo a nos transmitir, mesmo em situações difíceis", completa Ana Júlia.

A chegada conturbada da Maria Júlia nos ensinou muito sobre a resiliência e o verdadeiro amor", diz Ana Júlia

Super Chico


Francisco Guedes Bombini venceu a Covid-19 aos 3 anos

Nascido prematuro e com síndrome de Down, este pequeno sorridente ficou conhecido na internet como "Super Chico", por, aos 3 anos, ter passado por sete cirurgias e ainda superado a Covid-19. No quarto aniversário, em outubro, o "herói" Francisco Guedes Bombini, de Bauru (SP), recebeu mensagens carinhosas até mesmo de artistas como Alceu Valença, Chico Buarque, Elza Soares e Oswaldo Montenegro.

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"Ele tem uma história de luta e superação. Sua primeira cirurgia foi intrauterina, antes mesmo de nascer, e passou os seis primeiros meses de vida dentro do hospital", conta a advogada Daniela Guedes Bombini, 46, mãe do "menino mais forte do mundo" — assim Chico foi apelidado pelos mais de um milhão de seguidores nas redes sociais.

"Em todas as cirurgias que ele fez, sempre procurei me manter confiante. Quando contraiu o novo coronavírus, em julho, fiquei apreensiva. Mas felizmente ele venceu mais essa batalha, depois de 18 dias em que recebemos muito amor e apoio de todas as partes do mundo."

Alimentar essa corrente do bem que tanto lhe deu força é, para Daniela, uma das missões do filho. "O Chico ampliou nossos horizontes e nos mostrou o verdadeiro sentido da vida, por meio do amor puro, da empatia, da solidariedade", orgulha-se. "Aprendi muito com todas essas manifestações e hoje entendo que o Chico não é só da minha família: ele é de todo mundo."

Meu filho é uma pessoinha especial que, todos os dias, tem algo de bom para ensinar a alguém"

COMO AJUDAR

Instagram: @daniguedesbombini_superchico

Facebook: @superchicobauru

Uma nova batalha


Soropositivo, Diego Callisto define o episódio de contrair Covid-19 como o segundo grande baque de sua vida

Estar entre os primeiros 5 mil infectados pelo novo coronavírus no Brasil já era motivo de apreensão, mas o susto foi ainda maior para o cientista político brasiliense Diego Callisto, 30: "Se até agora ainda há incertezas, o desencontro de informações era maior quando descobri estar com Covid-19. E o fato de ser portador do HIV me deixou muito abalado", lembra Diego, que adoeceu em março, o segundo grande baque de sua vida. "O primeiro foi quando eu tinha 18 anos e descobri ser soropositivo. Leigo sobre o assunto, na época, achei que estava condenado."

Nas duas ocasiões, o cientista político crê que a busca por informações confiáveis foi um remédio para não esmorecer. "Com o HIV, aprendi a pesquisar estudos científicos de todo o mundo, a ponto de me tornar um ativista pela conscientização sobre os métodos de prevenção e contra vários preconceitos", lembra ele. "Com o coronavírus, a insegurança foi um pouco maior, porque havia poucos estudos a respeito."

Diego conta que foi quase uma "cobaia", pois, no início da pandemia, ainda não havia protocolo seguro para tratar a Covid-19 em portadores do HIV. "Busquei estudos de caso e meu médico consultou colegas, mas sabíamos que o risco existia. Fiz um tratamento em casa, mas com constante monitoramento por meio de exames", explica. Apesar de sua imunidade ter caído para o menor nível desde que soube ser soropositivo, em 17 dias, ele ficou livre de perigo.

Recebo muitas mensagens de portadores do HIV inseguros ou em busca de informações sobre como superei a Covid-19"

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Do lado de lá


A médica Gabriela Costa sentiu na pele o medo que seus pacientes relatavam ao ser contaminada pelo coronavírus

Desde março atuando intensamente no combate à pandemia, a médica Gabriela Costa, 37, especializada em UTI e emergência, começou a ter sintomas da Covid-19 em junho, durante um plantão: "Os funcionários me levaram para o setor de emergência em que eu estava trabalhando", conta ela, que atua em três hospitais da região metropolitana de São Paulo.

Para ela, a experiência de contrair a doença a ajudou a ser mais empática com os pacientes ao voltar para a linha de frente. "Sair da capa de médica para a capa de paciente foi importante no sentido de entender o medo, o pavor que os pacientes sentem. A primeira coisa que pensei, enquanto técnica da área de saúde, foi: 'Será que eu vou ser sorteada com a forma grave? Será que eu vou ficar bem? Será que vou passar a doença para alguém que eu amo?'."

Embora ela considere ter pegado uma versão moderada da doença, teve sintomas que foram suficientes para que o medo viesse à tona: "Minha pressão estava muito baixa, tomei três litros de soro e não conseguia urinar naquele dia. Fiquei com muito medo, pensei que meu rim havia parado de funcionar. Mesmo sendo médica, entrei em pânico. O teste para Covid-19 deu positivo e tive que desmarcar todos os meus plantões para ficar em isolamento. Foi muito angustiante".

"Eu vi muita gente falecer, mas também vi muitas vitórias e é com elas que eu vivo. Só consigo sair de casa e atender mais e mais pacientes com suspeita ou confirmação de Covid-19 porque eu sei que muitos deles ficarão bem."

Espero que a gente passe por esse momento tão difícil de forma engrandecedora. Essa pandemia está sendo muito importante para minha vida profissional e pessoal, estamos todos aprendendo a lidar com o desconhecido"

Este é um capítulo da série

Reconstrução

Inspiração em tempos de pandemia

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Gerente de conteúdo: Daniel Tozzi

Editor-chefe: Douglas Vieira

Coordenadora de MOV: Ligia Carriel

Editoras: Carol Ito e Juliana Sayuri


Direção de arte: Rene Cardillo e Carol Malavolta

Design: Carol Malavolta


Produção executiva: Tita Tessler

Produção: Talita David


Reportagem: Carol Ito (Cristiane Lopes, Gabriela Costa), Gilberto Yoshinaga (Ana Júlia da Silva Lopes, Diego Callisto, Francisco Guedes Bombini), Juliana Sayuri (Airton Lauriano dos Santos), Larissa Linder (Gilson Lima, José Marques Sobrinho)


Editor de redes sociais: Jean Louis Manzon

Editora assistente de redes sociais: Laís Montagnana

Community Manager: Rodolfo Gaioto


Fotos: Arquivo pessoal (Airton Carlos Lauriano dos Santos, Ana Júlia da Silva Lopes, Francisco Guedes Bombini), Fernando Moraes/UOL (Cristiane Lopes, Diego Callisto, Gabriela Costa, Gilson Lima, José Marques Sobrinho)