Opinião

Endividamento e a espiral da violência nas periferias

Em pesquisa recente, a CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) apontou que o percentual de famílias endividadas era de 78,1% em março de 2024.

A diferença na proporção de endividamento por gênero, 79% entre mulheres e 77,5% entre homens, é frequentemente explicada pela responsabilidade que as mulheres assumem no sustento das famílias empobrecidas. Nas periferias, outro elemento precisa ser considerado nessa conta: a dinâmica da violência que leva a vida de muitos jovens.

Aqueles que vivem nas periferias sabem como a violência se torna uma espécie de espiral que afeta de forma intensa a vida de jovens, mas que carrega junto a família, os amigos e o próprio sistema de segurança pública, que muitas vezes alimenta o seu crescimento ao não investir em políticas públicas para a juventude a médio e longo prazo.

Essa espiral é como um organismo dentro da comunidade, que atrai jovens desde a pré-adolescência, para quem a barriga vazia nutre vícios para esquecer do tempo de fome. Cheios de desejos, eles entram nesta espiral de violência e violação de direitos primeiro fazendo uso de drogas e, em seguida, passando a vender. Nessa dinâmica, as dívidas destes jovens começam a crescer. Um débito que arrasta toda a família e, em especial, a mãe.

É comum ver as mães que, para manter seus filhos vivos, fazem empréstimos, pedindo dinheiro a bancos e agiotas ou vendendo o pouco que têm em suas casas para parar algum débito que parece interminável.

Também é comum que as mães se endividem para pagar advogados, buscando manter condições mínimas de sobrevivência de seus filhos encarcerados. Algumas dívidas acabam apenas com a execução dos jovens envolvidos, enquanto outras continuam mesmo após a morte dos envolvidos. Como é o caso de empréstimos contratados em bancos, que vêm cada vez mais aumentando a oferta de crédito para a população de baixa renda.

Essa espiral da violência suga vidas que pouco importam para um sistema opressor, racista e elitista. Esses jovens pedem clemência para que não os matem, mas para esse sistema não há perdão. Se pobre, preto e pobre tem que ser exterminado ou preso, fica na mão de suas mães a responsabilidade de pagar as dívidas que se perpetuam nessa espiral da violência. E é em meio a sua dor que elas se perguntam quanto vale uma vida para quem está na linha do extermínio nas periferias, em um país em que 77% das vítimas são negras, segundo o Atlas da Violência 2023.

Só quem vive essa realidade entende que estatísticas de homicídios, encarceramento e endividamento não estão desassociadas. Transformar luto em luta pela memória dos que se foram envolve afirmar publicamente que é preciso debater a conexão entre endividamento e violência.

* Elisangela Maranhão é educadora popular e pedagoga. Teve o seu primeiro contato com os movimentos sociais em 1989, quando se envolveu nas atividades do Grupo Comunidade Assumindo suas Crianças (GCASC). Coordenou o Projeto Mães da Saudade e dedicou-se à defesa dos direitos à vida em seu bairro, Peixinhos, em Olinda (PE). Vencedora do 2º Prêmio Ecoa na Categoria Iniciativas que Inspiram.

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* Catarina Morawska é antropóloga e professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É bolsista produtividade Cnpq e pesquisa paisagens econômicas e endividamento no Brasil (Processos FAPESP 2023/00370-4 e Cnpq 421087/2023-4).

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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