Opinião

Mudança climática e enraizamento: ideia de 'cidades provisórias' é um risco

No dia 22 de maio, mais de 580 mil gaúchas estavam desalojadas. Dos 497 municípios do estado, 467 foram afetados. Santa Maria, na região central, é um deles. Foi lá que nasci e vivi até 2010.

Mil e duzentos quilômetros distante de onde cresci, acompanho estarrecida as notícias sobre esta tragédia. O coração aperta ao assistir vídeos com relatos de milhares de pessoas que perderam tudo. Como pesquisadora da noção de enraizamento, desperta minha atenção depoimentos como este: "O mobiliário a gente trabalha e recupera, mas nossa história a água levou".

O termo é fruto dos estudos da filósofa francesa Simone Weil que apresenta enraizamento como a "participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro". Traduzindo enraizamento como o sentido de pertencer a certo grupo, em determinado território, fico inquieta tentando imaginar o sentimento de ruptura vivenciado pelas mais de duas milhões de gaúchas impactadas por estas chuvas.

Penso naquela senhora aos prantos pela perda de suas fotos, seus tesouros do passado arrastados pela água. Penso no senhor, morador de Muçum, no Vale do Taquari, que recém havia iniciado a reconstrução de sua casa, destruída pela enchente em setembro de 2023 e que, mais uma vez, precisará recomeçar do zero. Qual futuro ele é capaz de pressentir?

Tem circulado pela mídia o termo "refugiadas ambientais" ou "refugiadas climáticas" para se referir às pessoas desalojadas por causa das chuvas intensas. O termo mais adequado é, segundo a Acnur (Agência da ONU para Refugiados), "deslocados internos em razão das mudanças climáticas". O mesmo órgão aponta que, na última década, os deslocamentos causados por eventos climáticos já são mais que o dobro dos deslocamentos causados por conflito e violência.

Como lidar com milhares de pessoas que perderam suas moradias e não tem para onde voltar?

O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), e o gabinete do vice-governador do Rio Grande do Sul, Gabriel Souza (MDB), estão discutindo uma estratégia que prevê a construção de "cidades provisórias" na capital e em outras três cidades da região metropolitana, onde se encontram 65% das pessoas desabrigadas no estado.

Uma destas "cidades provisórias" está prevista para ser construída na região norte da capital gaúcha. Porém, é alto o número de famílias desalojadas que residiam na região central do município. A prioridade deve ser soluções territorializadas, ou seja, que permitam às famílias permanecerem o mais próximo possível dos seus locais de origem.

É nítido que a situação é crítica e poderão haver áreas onde esta opção não seja viável. Porém, um aspecto crucial da territorialização são as relações de vizinhança. As pessoas desalojadas viviam em um determinado local junto a outras pessoas e os vínculos de afeto e confiança que elas têm entre si são imprescindíveis para que possam enfrentar juntas as dificuldades trazidas por este desastre.

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É de extrema relevância impulsionar espaços de acolhimento que permitam às pessoas elaborarem os sofrimentos vivenciados nesta tragédia através da fala e também da ação coletiva. Além disso, é importante estimular a participação das pessoas, na medida do possível, na organização do dia a dia do abrigo e no planejamento das estratégias de médio e longo prazo para a reconstrução dos bairros atingidos, por exemplo. Para isso, vale resgatar as estratégias de sucesso do Orçamento Participativo (OP), política pública implementada desde 1989, que possibilita a participação popular nas decisões sobre quais são as ações prioritárias nos territórios.

Tem uma canção gaúcha que gosto muito. "Céu, Sol, Sul, Terra e Cor" acaba de ser regravada pelo Fantástico nas vozes de um grupo diverso de artistas do Rio Grande do Sul. Ela canta que o estado é um lugar "onde tudo que se planta, cresce. E o que mais floresce é o amor". Torço para que as famílias encontrem solo fértil e seguro para assentarem as suas raízes novamente.

* Clarissa Borges é santa-mariense apaixonada pelos ventos, Norte e Minuano, que sopram nas terras gaúchas. Trabalhou por 10 anos como coordenadora em projetos sociais na Baixada Santista. Atualmente é doutoranda em Psicologia Social pela USP.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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