Opinião

Nossos jovens saem para brincar o Carnaval e não sabem se voltam

Pensar sobre cultura é fincar o pé em comunidades conhecidas como celeiro da cultura popular. Uma dessas comunidades é Peixinhos, em Olinda (PE).

Nos anos 1990, o bairro era reconhecido como o lugar de onde saíam os mais potentes percussionistas. Pessoas como Marco Axé, Giramem, Canhoto, Ismair, Toca Ogan, Senhorinha, Luciano, entre tantos outros. Esses artistas personificavam a vibrante cultura do bairro, evidente durante o Carnaval, quando os becos, ruas e vielas se enchiam de vida com ursos, palhaços, figuras fantasmagóricas, o simbolismo do morto carregando o vivo, as brincadeiras de lama, os jogos de água e outras divertidas atividades de rua que animavam a comunidade.

Em Olinda, o Carnaval é a época do ano em que todas as classes se encontram olho a olho, corpo a corpo, fora ou dentro da comunidade, misturando-se no improviso das trocas que emergem das ruas e ladeiras. Tantos corpos se encontram e se encantam ao som efervescente do hino de Vassourinhas, do rufar dos tambores e dos clarins de Momo, fazendo frevar e ferver os foliões que abraçam a alegria nostálgica dessa festa popular.

Dom Helder Câmara certa vez disse em um de seus programas de rádio que o Carnaval é a alegria popular, um momento de sonho na dureza da vida. Mas a alegria desse tempo de festa e de encontros não suspende o tempo de violência, morte e opressão.

Quem não mora nas comunidades periféricas talvez não saiba que o Carnaval é um momento de muita apreensão, pois os jovens saem para brincar, mas não sabem se retornam para suas casas. A tensão em cima dos corpos pretos é notória nesse período.

Notícias sobre o medo da violência abundam e os órgãos de segurança pública lançam comunicados para acalmar os ânimos sobre as medidas de prevenção e repressão previstas. E o enorme contingente policial aumenta ainda mais a vigilância sobre os meninos negros vendendo água, de cabelo pintado, que são associados à periferia.

Mas a violência presente o ano todo na cidade não a abandona só porque é Carnaval. Chegam então as notícias. No Varadouro, um homem fantasiado de papangu assassinou um comerciante. No sítio histórico, enquanto uma multidão de foliões se preparava para brincar, dois jovens foram crivados de bala por um militar do Exército, que alegou ter reagido a um assalto perpetrado com um "simulacro de arma de fogo". Com tiros à queima-roupa, um morreu na hora enquanto o outro, lavado de sangue, era filmado por transeuntes que lamentavam ele não ter sido morto também.

Parece haver algo que a alegria do Carnaval não inverte, apesar de tantas teorias sobre a inversão do mundo nesse período. Ainda seguem firmes as ideias de que bandido bom é bandido morto e de que policial que mata é aquele que cumpre com seu dever.

Nesse sentido é importante refletir sobre o repúdio do Sindicato dos Delegados de São Paulo ao desfile da escola de samba Vai-Vai. A nota mostra que eles se sentiram ofendidos com a forma negativa pela qual a polícia foi retratada.

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A Vai-Vai, que este ano elegeu o tema Hip Hop como enredo, respondeu dizendo que a ala em questão fazia uma referência ao álbum "Sobrevivendo no Inferno" do Racionais MC's. Quem não mora nas comunidades periféricas talvez também não saiba que esse álbum é tido como uma referência, um retrato doloroso e preciso do cotidiano de tantas pessoas.

Na folia do Carnaval há mais do que um encontro de corpos. Em meio ao brilho, plumas e paetês, no calor de 40 graus, o que se vê é também um embate de narrativas sobre a questão da segurança pública.

Uma que normaliza e perpetua a violência brutal e revela o triste disfarce de uma sociedade vingativa que aplaude a polícia quando esta persegue e maltrata os jovens da periferia. E uma outra narrativa que enxerga e vive a partir dos corpos periféricos, e que insiste que tanta carnificina só pode ser enfrentada ao se olhar com honestidade para séculos de violência, exploração e injustiça, e ao se iniciar uma conversa franca sobre medidas de reparação e redistribuição para o povo negro e periférico.

Se por tantas décadas o Hip Hop e o Maracatu das periferias de São Paulo e Olinda, entre tantas outras formas artísticas, salvaram vidas nas comunidades, elas têm cada vez mais o potencial de sedimentar uma narrativa nacional que tenha a periferia como referência. Não se trata de uma inversão momentânea durante poucos dias, mas um deslocamento lento, de longo prazo, para vozes há tempo demais silenciadas.

* Elisangela Maranhão é educadora popular e pedagoga. Teve o seu primeiro contato com os movimentos sociais em 1989, quando se envolveu nas atividades do Grupo Comunidade Assumindo suas Crianças (GCASC). Coordenou o Projeto Mães da Saudade e dedicou-se à defesa dos direitos à vida em seu bairro, Peixinhos, em Olinda (PE). Vencedora do 2º Prêmio ECOA na Categoria Iniciativas que Inspiram.

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* Catarina Morawska é antropóloga e professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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