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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A juventude negra quer viver, a juventude negra quer sonhar

Getty Images
Imagem: Getty Images
Igo Ribeiro

14/09/2021 06h00

A Campanha A Juventude Negra quer Viver surgiu a partir da campanha saúde mental da população negra importa realizada em 2020 pela Articulação Nacional de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadoras (es) )ANPSINEP), que completou 10 anos de criação, e segue mobilizando atores da sociedade civil no no enfrentamento ao racismo e na promoção da saúde mental da população negra.

A formulação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, inaugurada também em 2010, representou um passo adiante para reparação de problemas bastante conhecidos, como o racismo institucional que produz iniquidades no acesso à rede de saúde com dignidade, respeito e atenção às necessidades específicas de pessoas negras. Esse problema foi evidenciado por uma série de pesquisas que apontam problemas que atingem sobretudo mulheres negras, vítimas de violências e negligências diversas, entre elas a violência obstétrica e a desassistência durante o pré-natal.

Apesar da aprovação da política de atenção à saúde da população negra, muitos desses problemas permanecem ativos no Brasil, não foram revertidos e tampouco superados nos últimos 10 anos. Soma-se a esse problema o fato da violência contra a população negra ter-se escalonado nos últimos anos. Desde a década de 1980, quando as taxas de homicídios começaram a crescer no país, viu-se também crescer os homicídios entre a população negra, especialmente na parcela mais jovem.

No momento mais presente, a pandemia provocada pelo novo coronavírus intensificou as desigualdades sociais, econômicas e raciais no Brasil. Pessoas negras estão mais expostas ao vírus em função da pouca possibilidade de se manterem protegidas em quarentena, pelas dificuldades no acesso aos tratamentos e à vacinação, fatos que provocam efeitos nocivos para a saúde física e mental.

Sem vida não há saúde mental

Assim iniciamos nossa preocupação com o debate sobre saúde mental no Brasil, especialmente diante dos dados que se repetem ano após ano, o quais apontam a diminuição da violência para jovens brancos em detrimento do aumento da violência contra jovens negros. Os dados apresentados pelo Atlas da Violência em 2021 demonstram que em 2020 a taxa de violência letal contra pessoas negras foi 162% maior que entre pessoas não negras. Da mesma forma, a taxa de mortalidade de mulheres negras por 100 mil foi de 4,1, em comparação a taxa de 2,5 para mulheres não negras.

Nesse cenário de grave violência operada pelo Estado que gerencia uma política da morte direcionada à população negra, especialmente aos jovens negros, é impossível falar em saúde mental de maneira dissociada da realidade vivida por pessoas negras. Não há saúde mental numa sociedade desigual, injusta, cuja população que mais necessita se encontra desamparada e desprotegida. Se há fome, não há saúde mental. Se há miséria, não há saúde mental. Se há violência e morte, não há saúde mental.

As violências contra jovens negros têm um duplo impacto social e psíquico: o primeiro para os jovens que tem suas vidas, sonhos e planos interrompidos de forma brutal; o segundo para as mães, familiares e comunidade que testemunham e sofrem pela ausência de justiça e pelo silêncio diante das mortes diárias. Portanto, a saúde mental deve ser promovida com atenção especializada, mas também com justiça social e econômica.

Campanha "A Juventude Negra Quer Viver"

A campanha busca aproximar dois temas indissociáveis, a violência exacerbada contra a juventude negra e a saúde mental. O lançamento ocorreu no dia 28 de agosto com a participação de integrantes da ANPSINEP e especialistas da área de saúde mental e juventude. Os eventos seguintes versaram sobre temas que afetam a juventude negra e que impactam na saúde mental, tais como a saúde de jovens negras, pluralidades e estética, inclusão produtiva, juventude negra periférica, com participação de nomes como Mafoane Odara, Luiza Brasil, Helena Bertho, Rosa Luz e outros.

Na última quinta (09), durante a live com o tema Juventude Negra Periférica e Saúde Mental, o artista e produtor Evandro Fióti e o ativista e influenciador Raul Santiago enfatizaram a importância do debate sobre a saúde mental para os jovens periféricos.

Evandro Fióti destacou que "por conta de todas as mazelas do racismo presente na nossa sociedade, nossa vida tem pouco significado pro estado brasileiro, não tem valor nenhum. E uma das coisas que deixa isso em evidência é nosso adoecimento psíquico. A importância de olhar para o lado emocional vem sendo negligenciada, impossibilitando a interrupção dessas violências, que são intensificadas por conta do capitalismo, da sociedade e da produtividade [...] Levar esse tema para as juventudes é de uma urgência muito grande".

Acrescentando, Raul Santiago pontuou que "O tema [da campanha] por si só já diz muito sobre a realidade de um país como o nosso. [...] Os níveis de adoecimento, eles vão se aprofundando de forma muito grave e muito brutal na realidade da juventude negra no Brasil. E essas violências invisíveis e diretas que vão nos adoecendo e nos cansando. [...] A desigualdade é tão brutal, é tão gritante [...] que a gente bota saúde em segundo plano, a saúde física e mental, porque a correria do fazer acontecer no dia seguinte é a grande regra".

A garantia do direito à vida e a saúde mental de jovens negros e negras devem ser colocadas em primeiro plano na agenda política, levando em conta a realidade dos territórios com suas problemáticas, mas também com suas potencialidades. Joyce Avelar, psicóloga e também integrante da ANPSINEP, reforçou que o olhar sobre o corpo do jovem negro é permeado pela lógica capitalista e neoliberal, "sempre esse olhar desumano. É sempre esse olhar que nega a existência da periferia. Se a gente pensar na periferia, ela é contra-hegemonica em tudo. A periferia é uma potência criativa e ela rompe com o padrão em diferentes formas".

A fala de Raul Santiago e de Joyce evidenciam a necessidade de ampliar o debate e formular ações em defesa da vida e da saúde mental de jovens negros em sintonia com a realidade de cada território. Nesse sentido, além das atividades próprias de uma campanha de comunicação, também ocorrerão ações programáticas, tais como o desenvolvimento de protocolos destinados ao atendimento de mães e familiares vítimas da violência de Estado, além de medidas para impulsionar a redução da violência de Estado nas grandes cidades.

Serão convidados a participar das ações, atores e instituições das áreas de justiça, dos direitos humanos e da segurança pública, tanto no âmbito federal quanto estadual. Algumas ações já estão ocorrendo nos territórios, como o diálogo e parceria com a Ouvidoria da Polícia Militar de São Paulo e com representantes da comissão da igualdade racial da OAB de MG. Além desses órgãos, o diálogo ocorrerá também com Defensoria Pública da União, DP estaduais e seus colegiados, Ministério Público Federal e estaduais, especialmente com as promotorias de controle externo das atividades policiais, bem como com as instituições da Psicologia e do Serviço Social, como Conselhos Federais e Conselhos Regionais.

O encerramento será realizado no dia 23 de setembro com reflexões sobre o impacto da violência na saúde mental do jovem negro e de suas famílias. A campanha também está acompanhada do manifesto em defesa da vida e dos sonhos de jovens negras e negros. Esse manifesto já conta com aproximadamente 80 assinaturas de organizações da sociedade civil, instituições públicas e profissionais da saúde. O manifesto marca o engajamento das organizações que representam a sociedade e convoca as instituições do Estado para agirem de forma urgente para interromper o ciclo de violências que atinge a juventude negra.

Para contribuir com a campanha e se engajar na defesa da vida de jovens negras e negros, basta assinar o manifesto e acompanhar a agenda de atividades divulgada nas redes da ANPSINEP.