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REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Um ano esquisito

Sofia Favero

09/12/2020 04h00

Estamos na reta final de um ano que poderia responder ao temo "esquisito" com muita facilidade. É estranho não poder encostar em outras pessoas, ou vê-las presencialmente, perceber que não sabe mais manter contato visual, por ter se acostumado a longos meses de frente para uma tela fria, exageradamente iluminada, que tem nos cansado os olhos. Observo, especialmente acerca desse fator virtual, que as pessoas andam desenvolvendo atitudes fóbicas sobre os encontros na rede. Mais uma reunião? Outra aula? Mais um link para uma consulta digital? Enquanto psicóloga, com a pandemia, passei a ser convocada por pessoas de diferentes estados para desenvolver meu papel de escuta. Pessoas que, imagino, talvez, eu nunca consiga encontrar presencialmente. E isso é tão esquisito para mim.

Evidentemente que algumas pessoas se adaptaram bem aos desafios do agora. Conseguem até, depois de um longo processo, assumir que estão curtindo perder menos tempo no trânsito, se aproximar de amizades distantes, conhecer a casa de uma maneira diferente, mas essas afirmações podem, com facilidade, se converter em um lugar comum na saúde mental (essa ideia de que devemos ver o corpo meio cheio). Longe de querer me comprometer com um estereótipo good vibes, fast food, que liga o "bem-estar" ao próprio mérito, quero pensar com vocês o que haveria de sensível na esquisitice. Se tem algo que a psicologia nos ensina, por certo, é que o sofrimento é parte constitutiva de nossas vidas. Muito embora, novamente, essa não seja uma sentença que deva nos levar a dizer que estamos aqui para aprender com a dor, desde uma lógica selvagem que busca nos desumanizar, dessensibilizar, desdemocratizar.

Esquisito, no entanto, é o sentido brasileiro dado à expressão queer - que, no contexto norte-americano, seria empregado pejorativamente àqueles que eram vistos como diferentes, anormais, inumanos. Assim, teoria queer ou teoria esquisita parecia ser um bom caminho para refletir sobre os compromissos cotidianos que esses longos meses nos exigiram. Soma-se a isso o fato de eu estar triste. Estou triste com o resultado das eleições municipais de Recife, Porto Alegre e São Paulo. A tristeza (ou o fracasso) veio sendo objeto dessa teoria estranha há alguns anos, através dos trabalhos de Jack Halberstan, como um poderoso afeto. Mas como transitar pelo seguinte risco: produzir outras leituras é sempre uma fuga da realidade material, concreta e violenta que nos assola? Em caso de resposta negativa, conseguiríamos suportar uma linha bastante tênue entre falar de nossas esperanças (ou esquisitices) sem que, com isso, passemos a nos conformar com as coisas tal como elas são dadas?

Recentemente, no podcast La poudre, de língua francesa, Paul B. Preciado afirmou o ano de 2020 enquanto um momento extraordinário. Situa em suas considerações como têm sido extraordinárias as mobilizações e articulações insurgentes das consideradas minorias sexuais, raciais, étnicas, dentre outras. Essas contribuições feministas, negras, localizadas geograficamente, de acordo concepções bastante excludentes de centro e margem, foram contribuições pelas quais passamos muito tempo esperando. Preciado traz, então, que essas vozes que estão se erguendo, fazendo alguns paralelos com bell hooks, representam contrapontos às necropolíticas, aos racismos, nacionalismos, às estruturas que durante muito tempo buscaram nos paralisar, deixar-nos menos esquisitas.

Estaríamos vivendo um marco histórico. Um período de transição. Fim e começo se confundem diante das controvérsias que perpassam nossos traços. Estamos subindo no cavalo em movimento, e talvez por isso seja tão difícil de assumir o que há de belo no contraditório. O que há de vida em nossas alianças. Pelo menos 23 candidatos e candidatas trans conseguiram se eleger nas disputas das câmaras de vereadores, no mesmo ano em que o Brasil manteve um paradigma homicida: permaneceu sendo o país que mais mata pessoas trans e travestis do mundo. Muito além de depositar nossas fés irônicas (em diálogo com Donna Haraway) na política institucional, convém considerar como é que esse campo pode representar a possibilidade inédita de criação de novos arranjos para cidadania de sujeitas há tanto marcadas pela tutela.

Parece-me que o fim dessa década ilustrou um terreno fértil às reivindicações epistêmicas, que demandam de nós, enquanto pessoas interessadas na construção de novos espaços afetivos, avaliar as repercussões midiáticas, culturais e econômicas de pautas que costumavam ser sumariamente ignoradas. De fato, se ainda não me fiz entender, não é que o ano por si só tenha encerrado as injustiças sociais. É de se salientar que se tratou e ainda se trata de um período de grandes dificuldades a essas mesmas pessoas que podem estar, inclusive, mais vulneráveis nesse cenário. O que está em jogo é o reconhecimento de que, para além do campo individual, indo para nossas coletividades, temos avançado. Nossas vozes têm fomentado debates que em nossas infâncias, muito possivelmente, sequer teríamos tido acesso. Há um dilema da autoridade que está sendo reposicionado.

Os cargos oficiais de pessoas trans, muito além de se tratarem de discussões sobre empregabilidade ou condições materiais de subsistência, embora importantes, somam-se a reinvindicações públicas contra o tratamento jurídico dado a Mariana Ferrer, ao assassinato de João Alberto no Carrefour, assim como à vitória da esquerda em territórios antes dominados pelo bolsonarismo. Estamos repensando, desafiando, diferenciando. Nosso desejo não é o de contribuir para a manutenção de uma política da diferença sem a diferença, homogeneizante. Talvez aqui repouse a nossa validação e sustentação do desejo. Um desejo que, como Gloria Anzaldúa buscou nos mostrar, dá-se a partir das fronteiras, da articulação de contornos que sejam capazes de criar aquilo que não foi criado ainda.

No caminho, algumas coisas são perdidas. Eleições, inclusive. Mas os ganhos (para além dos óbvios já citados) permitem que a gente contrarie a narrativa singular de que estamos assujeitadas, assimiladas e imóveis - sem colaborar com uma política que incide no indivíduo com uma defesa romântica de sua autonomia. Diferentemente do que talvez se possa crer, o fim exercita nossas expectativas sobre como as coisas deveriam ter sido. Como seria se não tivesse sido da maneira que se deu? E se não existisse uma pandemia, como estariam as coisas? Sem conservadorismo, qual Brasil teríamos? Entretanto, assim como o queer buscou (re)significar o queer, nesse esforço de pensar o que há de agência no "esquisito", convém deslocar nossos olhares ao mundo de agora. O ano de agora. A política de agora. Os sujeitos de agora. Algo que pode parecer, paradoxalmente, um convite à resignação, na verdade é um prelúdio sobre resignações menos sufocantes, para que seja possível ouvir nossas próprias tristezas, que se espalham pelas cidades, pelas capitais e pelas redes.

O termo esquisito, para o dicionário, diz respeito ao que é desconhecido. Dentre seus variados significados (exótico, raro, etc.), esse termo pressupõe a necessidade do campo em que estamos inseridos de busca por novas experiências, dada a precariedade gerada pelas políticas da morte. Essas, sim, verdadeiramente esquisitas, dotadas de brutalidade, limites e desproporções. De maneira controvérsia, talvez fosse preciso mesmo que considerássemos o que há de extraordinário, tal como Preciado, em ouvir nossas vozes insolentes sendo escutadas. Não sei como o mundo foi um dia, tampouco sei como ele será no futuro. O que sei é que o ano permanece esquisito. E nós permanecemos, no meio de toda essa esquisitice, avançando.