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REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Marcas perderam lugar de conforto

O jornalista Renato Rogenski - Arquivo pessoal
O jornalista Renato Rogenski Imagem: Arquivo pessoal
Renato Rogenski

28/10/2020 04h00

Em algum lugar do passado, tão distante quanto a era da conexão discada, existiu um mundo encantado para as marcas. Essa terra de comunicação vertical se chamava "planeta sem internet". Já ouviu falar?

Nela, havia poucos meios de comunicação, nenhum deles interativo. Nesses espaços, todos pagos, eram escassos emissores para muitos receptores. Veículos e marcas falavam. A audiência só tinha a opção passiva de ler, ouvir, assistir. O cenário para os anunciantes era confortável e aconchegante. Parecia um comercial de margarina, daqueles antigos. Sabe?

Imaginou a cena? Agora corta para 2020. Estamos em mundo novo, 2.0, cabeado por fibra ótica e que gira na velocidade dos processadores. Nele, a comunicação se tornou horizontal. Todo mundo é emissor e receptor ao mesmo tempo, nas mais diversas plataformas e devices. E essa horizontalização empoderou os consumidores, que antes não tinham voz... Ou teclados, ou telas de smartphone (e redes sociais). Aí já viu, né? Já era aquele negócio de quarta parede.

E nesse universo novo então, a vida imita o streaming, e o Black Mirror está no dia a dia. É só procurar, no spam malicioso, no meme da vez ou naquela corrente do Zap. Não há mais lugar de conforto. É impossível permanecer na bolha. Quer ver? Imagine uma série baseada em fatos reais. Vamos chamar esse novo produto ficcional de "Eu sei o que as marcas fizeram no verão passado".

A sinopse é a seguinte: um clube contrata um jogador famoso (em partes por jogada de marketing). O problema é que o craque foi condenado pela justiça (em primeira instância) por um crime de estupro. O público começa a protestar contra o clube e cobrar os patrocinadores do time nas redes sociais. Pressionados, os anunciantes resolvem suspender seus contratos com a entidade esportiva e se manifestam publicamente. Com dor no bolso, o clube desiste do negócio. Placar final: 1 x 0 para o empoderamento dos consumidores.

Mas esse é só um dos tantos capítulos dessa história com tantos episódios por aí. Tem marca de cerveja que parou de objetificar as mulheres em suas propagandas e reviu seu posicionamento. Tem marca de sorvete que deixou de contar histórias inverossímeis em nome da estratégia de storytelling. Tem de tudo.

A lição que fica para o mundo real, de hoje, é o seguinte: responsabilidade social não pode ser apenas discurso. Nem somente um cargo ou departamento para embelezar a narrativa. Muito menos uma iniciativa oca e só para cumprir tabela no compliance da companhia. Isso é "caô social", como diria Celso Athayde.

Outra coisa. Há uma enorme diferença entre empresas que entendem marketing de causa e aquelas que apenas querem causar fazendo marketing. Descolar discurso e prática é atirar no próprio pé. Ter responsabilidade social não é um novo negócio, ele é parte indissociável do negócio. Porque no final do dia, todo mundo é gente. E pessoas têm necessidades. Isso vale da porta para dentro e da porta para fora.

Tá duvidando? Então vamos aos números. Segundo a pesquisa Estilos de Vida de 2019 no Brasil, desenvolvida pela Nielsen, mais da metade dos brasileiros, 58%, não compra mais produtos de empresas que fazem testes em animais. Além disso, 65% não compram de companhias que foram associadas às questões de trabalho análogo à escravidão.

Quer mais pesquisa? Um estudo da Ipsos, também de 2019, mostra que sete em cada dez brasileiros esperam que as marcas invistam em causas. Mais relevante ainda: 23% dos consumidores optaram por comprar produtos de uma marca que ajuda uma causa, em vez da concorrente.

A pergunta é: até quando as empresas vão esperar doer o bolso para mudar e entender que responsabilidade social não é modismo?

Sua empresa achou ruim a perspectiva desse novo mundo? Cuidado para não dar mole, vai acabar parando no Reclame Aqui. E vai ser cancelado nas redes sociais... E talvez nas gôndolas do supermercado.