Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Gay velho é cabeça de bacalhau?
Eu adoro bacalhau. Já comi com vários preparos e temperos, em vários lugares por onde viajei, mas confesso que nunca vi uma cabeça de bacalhau. Dizem os especialistas que mesmo o bacalhau mais nobre e de melhor procedência tem sua cabeça descartada para facilitar a salga. Dizem.
Há alguns anos, no final de uma parada LGBTQIA+ aqui em São Paulo, ouvi o seguinte comentário de um jovem casal gay que estava bem ao meu lado: "olha, os velhinhos vêm na parada". Achei o comentário meio estúpido e resolvi não deixar barato. Olhei para o casal já com uma reprimenda na ponta da língua, mas fiquei petrificado ao perceber que o velhinho era eu.
Aquilo bateu como uma pedrada na minha cabeça e, como tal, ficou doendo, doendo, mas como não sou de deixar passar nada comecei me dedicar a essa questão: "o que é ser um velho gay?".
Minha percepção sobre a velhice veio de fora para dentro, apesar dos sinais físicos do meu corpo, eu não havia realizado a velhice em mim. E há o que realizar?
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pessoas com 60 anos ou mais são consideradas idosas, o que lhes confere alguns poucos benefícios e enormes malefícios. Deixamos de ser homens gays, mulheres lésbicas e pessoas trans e passamos a ser enquadrados como pessoas velhas.
Nas minhas andanças por aí, sempre falando sobre esse assunto, algumas pessoas me perguntam: "mas ficar velho não é igual para héteros e LGBTs"? Na lata, a minha resposta é: não. A velhice não iguala ninguém, não desconfigura nenhuma existência e não será vivida igualmente por ninguém. A sexualidade é um mar de possibilidades que a velhice não rouba.
A orientação sexual, assim como a identidade de gênero, permeia a pessoa por toda a sua vida. Costumo dizer que se ao ficar bem velhinho eu tiver uma demência senil ou outra questão que me aparte da razão, continuarei a ser um homem gay. Isso está incrustado em mim, nos meus ossos e na minha alma. Não há como ser um velho como outro qualquer.
Ainda há um credo estúpido que a identidade de gênero e a orientação sexual são escolhas. Por favor, gente, pode não parecer, mas estamos no século 21. Esse credo imputa às pessoas muito mais do que elas podem suportar. Culpa, solidão "merecida", e uma infinidade de idiotices a que estamos submetidos.
Numa recente pesquisa do geriatra Dr. Milton Crenite sobre a saúde e envelhecimento da população brasileira, aliás, umas das raríssimas pesquisas que permite a pessoa pesquisada mencionar sua identidade de gênero e orientação sexual, fica evidente a diferença entre ser um velho gay e um hétero.
A propagada solidão e ausência das redes de apoio para as pessoas LGBT idosas, em muitos casos, é uma realidade. Quantos relatos eu tenho lido e ouvido onde um homem gay idoso, ao precisar de cuidados, é rejeitado pela família ou é obrigado a voltar "para o armário" a fim de ser acolhido. Imagine você precisar deixar de ser hétero para ter atenção e cuidado?
Dia desses, quando ainda podíamos estar juntos e em público, ouvi a seguinte declaração de um jovem gay: "nunca conheci um gay velho". Somos mesmo invisíveis. Pois bem, o velho gay está aqui.
Vou fazer um exercício contigo. Imagina você agora com seus 70 anos, solteiro e tendo que morar com seus familiares. Como seria para eles entenderem suas demandas emocionais e sexuais, sim sexuais, pois o tesão não acaba, ele apenas muda. Ouviria fácil coisas como "velho safado, velho sem vergonha", e outras palavras simpáticas que as pessoas usam ao se referirem às pessoas velhas que demonstram seus desejos.
Após muitos papers científicos, na maioria bem pobres e ruins, muitas pesquisas nas redes sociais, Youtube e em todos os canais que a contemporaneidade nos proporciona, fui obrigado a criar minha própria forma de acessar essas velhices. Somos mesmo invisíveis e quando o assunto são as velhices das pessoas LGBTQIA+, então, a invisibilidade é absoluta, dentro e fora da comunidade.
Mas vamos voltar ao velho gay, que é quem sou e onde estou. Não houve uma percepção minha sobre essa passagem de tempo, fluiu apenas, veio como veio a adolescência, como veio a idade adulta à qual pertenço. Para mim, a vida é um rio, que vai mesmo quando me sinto à deriva. Ele me leva, mas não para.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.
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