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REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Para qual falta vai seu choro?

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto
Noah Scheffel

09/09/2020 04h00

Este é um país que mata. Em período de crise sanitária, mata mais ainda. E mata ainda mais quem já estava morrendo.

Mata não "somente" por conta de um vírus ainda sem cura. Mata também pela violência do preconceito. Mata pela desumanização da vida. Mata por "orgulho".

E sempre foi assim.

No Brasil, pessoas transgênero possuem uma expectativa de vida de apenas 35 anos, frente à expectativa de vida de 70 anos de pessoas cisgênero. A estimativa da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) é de que 90% das mulheres transgênero e travestis se encontrem em situação de prostituição por motivo de sobrevivência, que 85% dos homens transgênero já pensaram ou tentaram o suicídio, e que apenas 0,02% das pessoas desse recorte populacional chegam à faculdade.

Ainda não estamos em um patamar para discutir direitos básicos como acesso à saúde, à educação, e ao trabalho formal, pois ainda estamos discutindo o direito à vida, visto que este é o país que mais mata pessoas transgênero no mundo.

Esses são dados que são invisibilizados pela maior parte da população, e que são evidentes apenas pelas pessoas aliadas à causa, que já estão em um processo de desconstrução de uma sociedade cisnormativa.

Porém, para discutir a morte de pessoas transgênero, precisamos primeiro que essas pessoas sejam retiradas da invisibilidade, passando para uma condição de existência.

São vidas de pessoas das quais você não sabe o nome, e que você passa a conhecer quando não há mais vida. Passa a conhecer como mais uma morte, pelas notícias que vinculam uma imagem preconceituosa de que o fato foi fruto do que aquela pessoa escolheu para si.

Será que você chegou alguma vez a se questionar o motivo de tratarem essas pessoas como um número, e não como um nome? De acharem que a morte violenta chegou por escolha? Ou será que você não chegou a contabilizar, quem dirá se questionar, se dada tamanha estatística de violência, seria algo passível de escolha?

Essa "mais uma morte", no Brasil, ocorre a cada 3 dias. E a cada 3 dias essa vida não tem direito a um nome, ao choro, e ao luto da perda.

E aqui eu peço que reflita, quantas pessoas chorariam a sua falta, ou a falta de quantas pessoas você choraria?

Só chora a morte de uma pessoa transgênero, outra pessoa transgênero, justamente por se sentir representada por aquela vida que foi tirada.

É um choro por, apesar de ainda estar vivo, morrer mais uma vez, através de outra pessoa, e a cada 3 dias, morrer de novo, e de novo, e de novo. Tantas são as vidas que uma pessoa transgênero precisa perder.

A exclusão perante a sociedade é tão grande que não há nenhum luto, nenhum vazio, nenhuma falta. Não existe um parente desesperado deitado por cima de um caixão, não existe um protesto ou uma manifestação de grande proporção. Não existe uma tragédia.

E antes dessa falta de vida, o que sempre sobrou foi falta de oportunidade, falta de equidade, falta de empatia, falta de acolhimento e falta de amor.

Onde está o seu luto quando o grupo de pessoas com menor expectativa de vida, ainda luta por dignidade e pelo direito de existir?

Se você se sentiu desconfortável, te peço que use este desconforto como oportunidade para olhar à sua volta e enxergar quais mecanismos você consegue alterar, na sua vida, no seu círculo de amizades, no seu trabalho, para que você seja agente de mudança dessa realidade. Para que além de nomes e faltas, exista vida.

Tenho 34 anos e não quero ter decretada a vida por apenas mais um ano.

Mas mais do que isso, independente da minha idade, eu quero ser sempre falta para alguém.