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REPORTAGEM

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Ver para imaginar, imaginar para criar

Ricardo Terto é roteirista e produtor de podcasts - Arquivo Pessoal
Ricardo Terto é roteirista e produtor de podcasts Imagem: Arquivo Pessoal

Ricardo Terto*

23/02/2020 04h00

Eu sempre gostei de quebra-cabeças. Minha mãe era empregada doméstica e, de vez em quando, a patroa doava presentes que seus filhos não queriam mais, então eu tive alguns brinquedos legais que não poderíamos comprar na época. Ao contrário de quem sou hoje, eu fui uma criança pouco apressada, mas ainda assim muito curiosa, e o quebra-cabeças era o tipo de jogo perfeito para mim. Exigia no mínimo duas coisas que hoje continuam fundamentais na minha vida: paciência e capacidade de observação.

A humanidade chegou no longínquo ano de 2020, quem diria, e a sensação é de que as relações mediadas pelos algoritmos nos deixaram um cenário de pânico, cinismo e imobilidade. O excesso de dados e técnicas de engajamento virtual gerou uma crise de imaginação. Antes de encontrar caminhos é preciso imaginá-los, eis aí um dos problemas urgentes desse século.

Nossa imaginação não é fruto de mágica e sim resultado de como somos estimulados diariamente. Isso significa reaprender a olhar, reaprender a escutar, reaprender a tocar. O feed infinito projetado para nos viciar na promessa de novidade no próximo deslizar e a playlist infinita focada em acompanhar o seu humor são exemplos de técnicas de engajamento que dispersam os nossos sentidos e isso pode ser perigoso sem um contraponto. Claro que a tecnologia pode estimular a imaginação - o Tik Tok, por exemplo, é uma rede social extremamente criativa, mas ainda assim sua lógica é a de olhar o mais rápido possível, reagir e ir para o próximo conteúdo.

Voltemos então ao jogo de quebra-cabeça. Uma das premissas do jogo é que para montar a imagem é preciso reconhecê-la mentalmente. É necessário se apropriar da imagem em tal nível que podemos reconhecê-la em suas pequenas partes. Quando penso em criar caminhos de um futuro possível, eu imagino que estamos tentando montar esse quebra-cabeça gigante, mas não sabemos que imagem queremos montar. Minha teoria é a de que essas respostas já estão no mundo, ao nosso redor, como pequenas peças dessa imagem, mas estamos ignorando cada uma delas porque perdemos a capacidade de olhar pacientemente para as coisas.

A terceira coisa com o que um quebra-cabeça nos ajuda é retomar a importância da organização. Sem ela é impossível se completar a imagem. Faço terapia e, recentemente, depois de uma sessão, cheguei a uma conclusão: "Se organizar é se autorizar". Se organizar tem a ver com a etapa de construir o desenho que imaginamos. É encaixar as peças em cada espaço possível, uma após a outra, e ver como elas vão fazendo sentido aos poucos.

O começo de uma quebra-cabeça é sempre difícil e até inibidor, mas a cada peça estamos mais perto de entender a imagem. Reapropriar o olhar não é somente um exercício técnico e poético, é também uma prática política para o século 21, em que devemos, sobretudo, alcançar a construção de uma proposta pós-capitalista.

*Ricardo Terto é autor dos livros "Marmitas Frias" (crônicas, ed. Lamparina Luminosa, 2017) e "Os Dias Antes de Nenhum" (contos, ed. Patuá, 2019). Também é roteirista e produtor de podcasts.