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REPORTAGEM

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"Coringa" é uma piada mortal com a contracultura e o ativismo

Cena do filme "Coringa", a quarta maior bilheteria no Brasil em 2019 - Divulgação
Cena do filme "Coringa", a quarta maior bilheteria no Brasil em 2019 Imagem: Divulgação
Fred Di Giacomo

11/12/2019 13h14

Vamos lá, a essa altura você já ouviu falar um caminhão de coisas sobre o filme "Coringa" do diretor Todd Phillips. O que "Coringa" traz de novo, no entanto, não é ser o "case de sucesso" de filme de herói que mais deixou um conglomerado de telecomunicações bilionário.

É, sim, o fato de ter sido aclamado por gente séria tanto como excelente filme de arte, quanto como um libelo contra o capitalismo.

Crise na infinita adolescência

Coringa é tecnicamente impecável e Joaquin Phoenix, seu protagonista, entrega uma grande interpretação. Seus melhores momentos, no entanto, acontecem quando o filme permite-se a alguma auto-ironia, como quando Coringa diz que "somos ratos de laboratório, eternas cobaias do sistema corrupto". Parece uma referência aos espectadores do seu filme testados em um experimento da WarnerMedia (proprietária da DC Comics) para descobrir como ocupar com seus heróis o espaço da contracultura e dos filmes para adultos.

Outro grande momento é quando manifestantes usam máscaras do assassino número 1 de Gotham City em protestos contra o sistema. Adultos fantasiados de personagens de HQs (quem se lembra do Batman de Copacabana pedindo impeachment da presidente Dilma Rousseff?) em protestos políticos parecem uma metáfora da infantilização que vivemos neste começo de século, processo concomitante à ocupação pela chamada cultura nerd-geek de um espaço que antes foi da contracultura.

Essa infantilização não é uma constatação minha; é do próprio Alan Moore, talvez o maior quadrinista vivo, pai de "V de Vingança", "Watchmen", "Do Inferno", e outros marcos da arte sequencial: "Odeio super-heróis", diz Moore em entrevista para o The Guardian, "acho que eles são abominações. (...) Eles foram criados por roteiristas que gostariam de expandir a imaginação de um público de 9 a 13 anos. Era para isso que serviam e eles estavam funcionando muito bem. Hoje, uma revista de super-herói tem um público, geralmente masculino, que vai de 30, 40, 50 a 60 anos. (...) Estes leitores se apoiaram nisso com o simples interesse em validar o fato de eles continuarem amando o Lanterna Verde ou o Homem-Aranha, sem parecer que são emocionalmente anormais. (...) Acho que é um sinal alarmante vermos um público adulto assistindo ao filme Os Vingadores e se deliciando com conceitos e personagens criados para entreter garotos de 12 anos na década de 50."

A crítica de Moore aos super-heróis soma-se a surra dada pelo cineasta Martin Scorsese aos filmes do gênero. Scorsese foi uma brutal inspiração para o "Coringa" de Todd Phillips, especialmente com seus filmes "Taxi Driver" e "O Rei da Comédia" de quem "Coringa" muitas vezes parece um pálido e acéfalo remake. O que irrita Scorsese é a falta de surpresa no gênero. Não há uma chance de Arthur Fleck (nome civil do Coringa) escapar do destino maniqueísta que essa história quer contar: o sistema é bruto, Arthur é um pária com problemas mentais, sua única saída será se tornar um psicopata. Ele vai sofrer todo bullying, desprezo e violência para que isso aconteça. "A gente tem um dia ruim e tudo muda" ecoa o Coringa da clássica HQ "A Piada Mortal", escrita por Alan Moore.

Qual a inovação narrativa do Coringa? Colocar um vilão branco com desvio de caráter e alma torturada como protagonista? Mas não são sobre isso "Sopranos", "Breaking Bad", "Scarface" e tantos outros? A jornada de "apanhar, apanhar até sair matando todos" não é a do Rambo, de Stallone, no primeiro filme sobre o ex-Boina Verde americano? O espectador pode sair da sessão de Coringa assustado, deprimido, entretido, mas dificilmente inspirado. Ele vê os problemas do dia a dia na tela (o que mostra a carência de bons filmes que falem de saúde mental, desemprego, direitos civis e da crise do capitalismo; como é o caso de "Eu, Daniel Blake", por exemplo), mas não tem nenhum insight ou esperança. Na Gotham City de Todd Phillips não existe utopia. Ou se tem a plutocracia da milionária família Wayne ou o caos violento do palhaço assassino.

Zachary Levi, o Shazam, elogia Coringa: “Cinema de verdade” -  -
Cena do filme "Coringa"

É interessante observar que o cinema de Scorsese e cia já era, de alguma forma, uma diluição do cinema de autor para o consumo das massas. Sobre essa geração de diretores o escritor argentino Juan José Saer uma vez disse que "Para mim a grande época do cinema foi a do apogeu do cinema de autor. Há (...) diretores norte-americanos importantes, mas que por causa da queda-de-braço que sempre tiveram com o sistema viram fracassar muitas de suas obras. (...) O cinema se tornou uma espécie de substituto da cultura. Costumo dizer que agora o cinema não é uma arte, mas um tema de conversação à mesa."

Quando se assiste a um filme de diretores que inspiraram Scorsese como o japonês Akira Kurosawa ou o brasileiro Glauber Rocha, você entende o que Saer está dizendo. Isso quer dizer que todo cinema bom deve ser cabeçudo? Claro que não! Em "Coringa" existe um belo momento em que seu protagonista se esconde no meio de um cinema onde exibe-se um filme do comediante inglês Charlie Chaplin. Os poucos segundos de Chaplin em cena são melhores que os 123 minutos de "Coringa" juntos. Os filmes de Chaplin eram populares, divertidos e zero intelectualóides, mas seu cinema fugia do óbvio, era inventivo e questionador.

Quando você defende que o "Coringa" se enquadre não como entretenimento ou cultura de massa, mas como um filme de arte ou de contracultura, você está dizendo que esse é o máximo de complexidade que o meio cinema pode alcançar. A existência humana é complexa, nossa realidade social é profunda e nossa capacidade cognitiva gigante. Limitar o escopo das nossas narrativas é limitar a representação da vida humana e a própria vida em si.

Coringa sequestrou o discurso anticapitalista

O poderoso chefão do comunismo, Karl Marx, e a liga extraordinária da Escola de Frankfurt ficariam confusos: um produto de consumo, feito por uma grande empresa capitalista, sendo visto como a vanguarda revolucionária contra o… capitalismo? Santa hipocrisia, Batman! Você lembra quando a máscara de Guy Fawkes (presente no quadrinho "V de Vingança") virou símbolo da Primavera Árabe, do Occupy Wall Street e das Jornadas de Junho brasileiras de 2013? Bom, de acordo com a revista Time, o uso deste item anarco-fashion por manifestantes levou o rosto de Guy Fawkes a se tornar a máscara mais vendida na gigante de vendas Amazon. O capitalismo e Jeff Bezos, dono da Amazon e segundo homem mais rico do mundo, agradecem.

Aliás, não é irônico que figuras como Marielle, Marighella, Simone de Beauvoir ou Zumbi sejam vistos como bandidos, corruptos e vigaristas, mas Coringa, um psicopata sem sentimentos criado para vender gibis, seja um ícone de rebeldia? Para piorar, filmes de herói, estão criando uma "monocultura" cinematográfica ao redor do mundo. No Brasil, isso ficou explícito com o caso do filme "De pernas para o ar 3" - uma comédia comercial. O filme brasileiro estreou levando bastante público ao cinema, mas foi expulso das salas com a chegada do blockbuster da Marvel/Disney "Vingadores: Ultimato", que monopolizou 92% das salas de cinema do nosso país. Não é uma questão apenas de gosto pessoal, é a economia, estúpido!

Coringa  - Divulgação - Divulgação
Coringa foi lançado no Brasil em outubro deste ano
Imagem: Divulgação

"Coringa" pode até ser uma polaroid histérica do momento confuso em que vivemos, uma fotografia do óbvio, mas como uma polaroid, o filme irá se apagar, irrelevante, com o tempo. Os fanboys de filmes de herói costumam dizer muitas vezes que as críticas a esse estilo seriam elitismo e uma tentativa de definir o que é ou não arte; o que é ou não cultura. Claro que os filmes de herói são parte da nossa cultura. Da cultura de massas feita para gerar lucro e que têm ocupado espaço de obras autorais e realmente questionadoras.

A crítica a esses filmes não é a crítica a seus espectadores, a um diretor específico ou a um personagem popular. É uma crítica estrutural ao sistema que vitimiza o próprio protagonista de "Coringa" e que, como diz a psicóloga a negra que lhe presta atendimento, "não se importa com gente como nós". É uma crítica que mira no colonialismo cultural, no neoliberalismo e na transformação da arte em fast food padronizado, de rápido consumo, que não respeita as particularidades regionais e é produzida e vendida por grandes corporações.

Quando o mainstream pauta a contracultura e o capitalismo cria os próprios ícones anticapitalistas, não é a contracultura que está hackeando o sistema, mas o sistema que se apropriou da contracultura e a transformou em chiclete pronto para ser comprado, mascado e cuspido por bocas famintas por novidades inofensivas. O que parecia revolucionário prova-se pastiche. "Ninguém está rindo agora", concluiria o Coringa, sem perceber que a piada era ele. Uma piada mortal contada pelo sistema que segue rindo cinicamente e disseminando sua conversa pra boy dormir.