Topo

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Aprendendo a ver com o estrabismo da infância

Bel Santos Mayer integrou o primeiro ciclo de curadores de Ecoa - Arquivo Pessoal
Bel Santos Mayer integrou o primeiro ciclo de curadores de Ecoa Imagem: Arquivo Pessoal

Bel Santos Mayer*

Curadora de Ecoa

14/11/2019 04h00

Num domingo, dia em que tinham mais tempo para falar da semana, a menina contou para a mãe que via tudo duplo: duas mães, duas colheres, duas canecas, cada irmã duas vezes. Ela ainda não sabia ler nem escrever. A mãe achou que era mais uma brincadeira da menina que gostava de inventar histórias. Respondeu achando graça: "vai ver que as lombrigas subiram para os olhos". Riram.

Na semana seguinte, a menina insistiu no assunto. Alguém arriscou dizer que aquilo era sinal de "vesguice". A mãe então reparou com atenção e viu que os olhinhos estavam desviados para dentro, como se a cada olho só interessasse a própria banda do nariz largo, igual com a D. Teresa, não a da rua de cima, "a D. Teresa leoa vesga de Daktari".

Pronto! Só faltava a molecada da rua dar apelido.

Católica de batizados e festividades, a mãe fez promessa para Santa Luzia proteger os olhos da menina. Pediu folga para a patroa, levou ao médico de olhos. O diagnóstico: estrabismo convergente. A receita: óculos com tampão e fisioterapia. A menina precisava fortalecer a musculatura dos olhos, recuperar o posicionamento dos eixos oculares, reaprender a olhar.

Alguns exercícios, na clínica, ainda que monotemáticos, com personagens de HQs de sucesso nos anos 1970, a divertiam: olhando numa espécie de binóculo deveria colocar lacinhos na cabeça da Minnie, uma bengala na mão do Tio Patinhas, um boné no Pato Donald...

Nem sempre dava certo, porque a Minnie e o Donald tinham duas cabeças, e o Tio Patinhas, quatro mãos.

Os exercícios de casa eram cansativos e diários: um olho tampado e o outro fixo em uma caneta em repetidos movimentos de ida e vinda, distanciando-se e aproximando-se do nariz por uma dezena de vezes. Muito antes de terminar, uma dor de cabeça chegava. Ela bem tentou fingir que não sabia mais contar de 1 a 10, mas sempre tinha alguém vigiando a contagem ou incentivando como se faz com os(as) atletas.

A cena se repetiu por alguns longos meses. A visão se restabeleceu.

Na adolescência, os hormônios e suas combinações trouxeram a dupla visão de volta.

Uma nova oftalmologista receitou, além dos exercícios com a caneta (aqueles que ela nunca esqueceu), alternância de olhar: a cada meia hora de escrita ou leitura, olhar pela janela e fixar em algo distante.

Na casa, construções vizinhas dificultaram cumprir a recomendação na íntegra. Na escola, sob a suspeita de distração, e por ser a mais alta da turma, sua carteira ficou sendo a do fundo no canto da parede.

Neste tempo a menina era tímida. Obedeceu sem questionamentos.

Restava-lhe aproveitar o caminho entre a casa e a escola, para olhar perto e olhar longe. Assim fez. O exercício rendeu-lhe competência para perceber os detalhes dos caminhos. Brincava de ver duplo cada vez que encontrava algo que lhe agradava: duas flores, dois carrinhos de pipoca.

Às vezes queria ver metade das coisas ruins, como as violências sofridas por moradores(as) de uma ocupação do seu bairro, numa reintegração de posse. Via tudo duplo: dois cacetetes, dois tratores, mas, também, duas barricadas, dois cordões de pessoas resistindo à frente dos tratores. Ela sabia (e ainda sabe) relaxar os músculos dos olhos, fixar em uma coisa boa e multiplicá-la. Desta forma pode ver em dobro a resistência e a vitória dos moradores(as) da Fazenda da Juta. Em 2016, quando tiveram suas moradias regularizadas, após décadas de luta, ela se lembrou daquele dia.

Em seu caminho encontrou muitas outras pessoas que, com diagnóstico e tratamento semelhantes, seguem voluntariamente incuráveis, vendo mais do que existe.

Há quem zombe deles e delas.

Há, porém, os(as) que acreditam no que não veem e se juntam. E não são poucos. Atuando em diferentes áreas, insistem em ocupar as janelas e olhar para o longe.

Há, também, os(as) que abrem muros e fazem janelas.

*Bel Santos Mayer é educadora social, fez Magistério, duas graduações em universidades privadas (Ciências/Matemática e Turismo) e especialização em Pedagogia Social na Itália. Aos 50 anos entrou em uma universidade pública (EACH/ USP) para fazer o Mestrado no Programa de Pós-graduação em Turismo, pesquisando a contribuição da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, em Parelheiros, para o estudo das mobilidades. Vem cuidando do seu estrabismo, nas janelas abertas pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário - Ibeac pela Rede de Bibliotecas Comunitárias LiteraSampa. Integrou o primeiro ciclo de curadores de Ecoa, contribuindo, durante quatro meses, para a construção de pautas e busca de novos olhares para o conteúdo. Despede-se da função de curadora com esta reflexão porque um novo ciclo se inicia, mas permanece conectada ao movimento para a construção de um mundo melhor.