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Notícias da Floresta

REPORTAGEM

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A luta diária dos centros de atendimento à fauna silvestre no Brasil

A veterinária Liliane Milanelo pesando filhote de tamanduá-bandeira  - Lilian Sayuri Fitorra/Cras PET/Zoo SP
A veterinária Liliane Milanelo pesando filhote de tamanduá-bandeira Imagem: Lilian Sayuri Fitorra/Cras PET/Zoo SP

07/10/2021 06h00

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No lugar das conhecidas árvores, seu abrigo e fonte de alimento, a preguiça-real deparou-se com mais um poste. É Manaus sobrepondo mais um bairro, o Colônia Terra Nova, à floresta. Sem conhecer o risco, a fêmea de Choloepus didactylus escalou até a extremidade e agarrou-se à fiação.

Era 15 de fevereiro e a preguiça-real, machucada pela descarga elétrica que sofrera, deu entrada no Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) da capital do Amazonas - o único do maior estado do Brasil. Nessa espécie de hospital do SUS especializado em fauna silvestre, mantido pelo Ibama, verificaram que ela estava com as quatro patas lesionadas e uma das pernas fraturada.

A preguiça-real, que ganhou o nome Rainha, enfrentou uma cirurgia para colocar pinos em sua perna e meses de injeções e de limpezas diárias dos ferimentos. Para ajudá-la na batalha pela recuperação, cujo objetivo era o retorno à vida livre, os profissionais do Cetas lhe davam uvas. Rainha adorava as uvas.

E o esforço deu resultado. Em 7 de agosto, Rainha deixou no centro o nome que recebera e voltou a ser mais uma preguiça-real livre na floresta.

Contada assim, a história da Rainha permite conhecer somente uma das faces do sistema brasileiro de atendimento a animais silvestres. A boa. Os detalhes das carências cotidianas e o enorme empenho das equipes para superar inúmeras dificuldades são ignorados pela maioria das pessoas.

Responsáveis por salvar um incontável número de animais silvestres, porém pouco conhecidos pela população, os centros de triagem e de reabilitação de fauna brasileiros vivem uma rotina de problemas e carências.

No país de maior biodiversidade do planeta, o sistema de atendimento a espécimes resgatados de traficantes de animais e cativeiros ilegais, com ferimentos ou vítimas de maus-tratos não é prioridade dos gestores públicos ambientais e depende do esforço e da dedicação dos profissionais envolvidos.

Filhote de suçuarana no Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (CeMaCAs) da Prefeitura de São Paulo. - SVMA SP - SVMA SP
Filhote de suçuarana no Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (CeMaCAs) da Prefeitura de São Paulo.
Imagem: SVMA SP

O Brasil conta com uma rede de 62 centros de triagem e de reabilitação que atendem animais silvestres não aquáticos, conhecidos pelo país por suas siglas: Cetas, Cras ou Cetras. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, possui 22 unidades (35% do total nacional) distribuídas por 18 Estados e no Distrito Federal (DF).

O Ibama é o órgão com a maior quantidade de centros e o formatador do modelo brasileiro de atendimento, responsável por, em um único local, receber, triar, dar assistência veterinária, reabilitar e destinar (seja para soltura, para transferência a outras entidades de reabilitação ou para envio a cativeiro em criadouros, mantenedouros e zoológicos) os animais atendidos.

As primeiras unidades de assistência à fauna silvestre surgiram no início da década de 1970 no antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), órgão que foi a base para dar origem ao Ibama em 1989. Com o passar dos anos, o modelo dos Cetas consolidou-se no Instituto e em instituições que lidavam com fauna não doméstica.

Em 2005, o Ibama tinha 21 centros e contava com outros vinte instalados em instituições parceiras. Nesse mesmo ano, o órgão preparou o Projeto Cetas-Brasil. O Instituto constatou formalmente que os animais vítimas de traficantes eram - e ainda são - os que chegavam em maior quantidade para atendimento e diagnosticou que sete de suas unidades estavam "em situação precária", sendo que cinco resumiam-se a "alguns viveiros improvisados". Ou seja, 57% delas não cumpriam adequadamente as funções para as quais foram criadas.

O Cetas-Brasil vinha com a proposta de distribuir pelo país 117 centros, que teriam três níveis de estrutura e complexidade. O projeto nunca foi implantado.

Atendimento a lobo-guará no Cetras Nova Lima, em Minas Gerais - IEF MG - IEF MG
Atendimento a lobo-guará no Cetras Nova Lima, em Minas Gerais
Imagem: IEF MG

A importância dos centros do Ibama

Até 2011, quando entrou em vigor a Lei Complementar nº 140, que passou aos Estados a responsabilidade de autorizar o funcionamento de empreendimentos que trabalham com animais silvestres, como os Cetas, essa função era uma atribuição exclusiva do Ibama. Desde então, o órgão ambiental federal passou também a assinar acordos de cooperação técnica com os Estados e o DF, transferindo para eles a competência da gestão da fauna em cativeiro. A exceção foi São Paulo, que já começara a assumir essas atividades em 2008.

O fato de ter criado os Cetas, e manter a fauna em cativeiro sob sua responsabilidade durante décadas, fez o Ibama ter uma rede de centros extensa e capilarizada. E mesmo 10 anos após o início das transferências da gestão da fauna em cativeiro aos estados e ao DF, o instituto ainda é o único responsável por centros de triagem em doze unidades da Federação. Somente nove estados e sete prefeituras também possuem esse serviço. Chama a atenção a quase total dependência das regiões Nordeste e Norte das unidades do órgão federal.

"Considerando que essa atribuição acarreta ônus para os órgãos ambientais [estaduais e municipais], existe um desinteresse em assumi-la, diferentemente do que ocorre com a área de licenciamento. Depende de a sociedade civil exigir que essa atividade seja realizada com o rigor e compromisso de uma nação preocupada com o seu patrimônio faunístico", destaca a veterinária Angela Maria Branco, pesquisadora sobre os centros de triagem e de reabilitação e diretora da Divisão de Defesa e Vigilância Ambiental da Secretaria Municipal de Segurança Urbana da Prefeitura de São Paulo.

Para o biólogo Yuri Marinho Valença, que há 14 anos trabalha em centros de triagem e de reabilitação e atualmente é o coordenador do Cetas Tangará, da Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH) em Recife, "a grande maioria do poder público e da sociedade no geral nem tem conhecimento desses centros e, com isso, nem imagina as necessidades, benefícios e importância deles para a saúde do planeta."

Valença defende que todos os municípios deveriam ter essas unidades de atendimento à fauna silvestre, pois os animais que precisam de assistência são vítimas, justamente, dos processos de urbanização e ocupação humana.

Chegada de animais apreendidos ao Cetas de Belo Horizonte (MG).  - Waita/Divulgação - Waita/Divulgação
Chegada de animais apreendidos ao Cetas de Belo Horizonte (MG).
Imagem: Waita/Divulgação

Dos nove estados nordestinos, oito (Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão) têm centros de triagem do Ibama. Bahia e Pernambuco são os únicos em que há compartilhamento dessa responsabilidade com o órgão federal.

Na região Norte, Amapá, Roraima, Amazonas e Acre possuem somente um Cetas cada, todos do Ibama. Tocantins tem um centro, que pertence ao governo estadual. Já no Pará, que conta com seis unidades, quatro pertencem a mineradoras e não recebem animais de apreensões ou resgatados por agentes de órgãos públicos. Os outros dois, um em Santarém e outro inaugurado em Belém no início do ano, têm baixa capacidade de atendimento. Quando os animais necessitam de assistência especializada, são encaminhados para instituições parceiras. Foi o caso de boa parte dos 1.717 animais apreendidos pela Polícia Militar em 2020.

A situação do Pará poderia estar melhor. O Ibama mantém fechado em Benevides, município próximo a Belém, um centro novo, equipado com viaturas e destinação orçamentária (R$ 1,5 milhão entre 2018 e 2021). Uma auditoria interna do instituto tenta identificar motivos que justifiquem a não inauguração da unidade nos últimos anos pela superintendência do órgão no estado. À reportagem da Mongabay, o órgão federal informou que o Cetas "está em processo interno de avaliação para que os procedimentos para reabertura sejam retomados."

Caso semelhante acontece em Rondônia. Um centro construído em 2009 pela Santo Antônio Energia, como uma exigência do processo de licenciamento ambiental da usina hidrelétrica de mesmo nome, foi fechado após anos operando em Porto Velho. A empresa encerrou as atividades e a transferência da estrutura para o Ibama nunca foi concluída. Desde então, Rondônia não tem um centro para receber animais silvestres. O Instituto afirmou à Mongabay que "está em tratativas finais para reabertura."

De acordo com a Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema), os estados, principais responsáveis pela fiscalização de fauna, já deveriam estar estruturados para atendimento de animais apreendidos e resgatados - e não, como ainda ocorre, dependentes do Ibama. Essa discussão fez com que o órgão federal, na recente Instrução Normativa nº 5, de 2021, determinasse que o recebimento de animais de apreensões estaduais, do DF e municipais ocorram somente nos centros em que o governo do Estado ajude a custear suas atividades.

(Por Dimas Marques/Fauna News)

Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.