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REPORTAGEM

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Como indígenas do Xingu estão reinventando o luto diante da covid-19

Kuarup em aldeia Kamayurá, Parque Indígena do Xingu (MT) - Hilda Azevedo
Kuarup em aldeia Kamayurá, Parque Indígena do Xingu (MT) Imagem: Hilda Azevedo

24/06/2021 06h00

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"O corpo chegou. Nós vamos morrer!". Isso foi o que Watatakalu Yawalapiti ouviu dos seus parentes por telefone após a morte de um tio por covid-19, em junho de 2020. Foi um dos primeiros casos fatais no Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, uma das mais icônicas terras indígenas brasileiras.

Watatakalu Yawalapiti, 40 anos, é uma das lideranças do seu povo. Nascida e criada no Xingu, fala cinco línguas indígenas diferentes. É sobrinha do Cacique Aritana, histórica liderança dos indígenas, que faleceu em agosto de 2020 por covid.

Aritana, referência para os 16 povos diferentes que habitam o Xingu, faz parte de uma geração de líderes que foram duramente afetados pela covid. Bibliotecas ambulantes, detentores de um conhecimento ancestral e único que viveram e sobreviveram a inúmeras epidemias, invasões e ameaças em suas décadas de construção da luta indígena. Watatakalu ainda não fala o nome do tio cacique em respeito, por estar vivenciando o luto.

Mas conta orgulhosa sobre a sua linhagem. Hoje, o Xingu é uma ilha de preservação da floresta cercada por desmatamento por todos os lados. Artesã, Watatakalu Yawalapiti é coordenadora do Departamento de Mulheres da Associação TI do Xingu (Atix). Filha mais velha da sua família, ela me conta como os xinguanos precisaram encarar a morte e penaram para se adequar a uma nova realidade que chegou sem pedir licença.

"A pandemia mostrou para a gente que cuidar das mulheres é cuidar dos maridos, filhos, irmãos, avôs, pais dessas mulheres. Não tem como separar, são as mulheres que administram as nossas aldeias", ressalta Watatakalu.

Não foi sem discordâncias que a covid chegou até a aldeia de 300 pessoas no Alto Xingu em que Watatakalu vive. Tentando se fechar, a exemplo do que fizeram outros povos indígenas, os Yawalapiti conseguiram evitar a propagação da covid até junho de 2020.

Tudo mudou quando um outro tio adoeceu em uma cidade próxima, Canarana, e faleceu. Tradicionalmente, o enterro é feito na própria aldeia. As restrições da pandemia, porém, recomendam o isolamento total, o não contato com o corpo da pessoa morta e um enterro à distância.

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A tradição indígena se chocou com a má gestão brasileira da pior pandemia em cem anos. Em todo o Brasil, são mais de 55 mil casos de covid-19 confirmados entre os povos indígenas, com 1.121 mortos - incluindo importantes lideranças - e 163 povos afetados (dados de 22 de junho).

Enquanto a família discutia o que fazer, se o enterro seria feito na cidade ou na aldeia, dois irmãos mais novos resolveram que o corpo seria levado para a aldeia e contaram com o apoio de um avião da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), ligada ao Ministério da Saúde.

"Eu liguei para as minhas primas e elas me disseram: já foi, já está voando. Eu pensei: como assim? Houve um desespero muito grande. Ele foi enterrado na aldeia. A partir do momento em que chegou o avião, contaminou o polo e a aldeia inteira", relata. Para Watatakalu, isso foi "uma irresponsabilidade muito grande por parte da Sesai".

Procurada para comentar o episódio e a assistência dada aos indígenas, a Sesai negou o ocorrido. De acordo com o Ministério da Saúde, "não procede a informação de que a covid-19 tenha entrado no território do Alto Xingu por meio do traslado de corpo de indígena falecido". De acordo com a Sesai, "todos os funerais realizados respeitaram os protocolos de manejo de corpos previstos pela pasta".

A Sesai afirma que "atua em permanente contato" com os Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi), que também participaram da elaboração dos Planos Distritais de Contigência para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus.

Segundo o Ministério da Saúde, o "sepultamento e traslado de corpos passam por todos os procedimentos legais", para atender ao protocolo adotado em casos confirmados ou suspeitos de covid -19", prevista por uma portaria de março de 2020 do Conselho Nacional de Justiça.

Não é o que o relato de Watatakalu revela.

Conta a liderança indígena que, a partir do contato com o corpo, 290 pessoas de uma aldeia onde vivem 300 indígenas se contaminaram com a covid ao longo do tempo. Quase todo mundo. Dezenas de pessoas morreram no Xingu.

Watatakalu perdeu esse tio, irmão mais novo de Aritana. Perdeu o tio cacique Aritana. Perdeu uma prima. Perdeu uma tia-avó. E perdeu recentemente a mãe, a pajé Yamoni Mehinaku.

A sua aldeia, lembra, vive em círculo. O que acontece com um costuma afetar a todos. A irmã de Watatakalu ficou internada dois meses com covid e quase morreu. "Acho que a sua irmã vai morrer hoje. Essa é a mensagem que eu recebia dos meus parentes. Porque a minha irmã ficou com mais de 75% do pulmão comprometido. Era muito desesperador".

Envoltos em uma espiral de desespero, os indígenas do Alto Xingu enterraram todos os mortos na própria aldeia. No início, evitaram os preparativos tradicionais, que incluem a manipulação do corpo e a pintura corporal. No fim, com todos contaminados, acabaram prestando as homenagens devidas de acordo com a tradição.

Desrespeito às tradições

1 - Douglas Freitas/Apib. - Douglas Freitas/Apib.
Watatakalu Yawalapiti.
Imagem: Douglas Freitas/Apib.

Outro agravante é a ausência do poder público e a dificuldade em definir protocolos aceitáveis que respeitem as tradições indígenas. Faltou diálogo, analisa Guerreiro. O Ministério da Saúde simplesmente impôs que mortos pela covid-19 fossem enterrados com caixão lacrado ou cremados, sem velório demorado ou aglomeração, para evitar a disseminação. Uma regra geral que não respeita as particularidades indígenas.

"Houve muita dificuldade em pactuar procedimentos sanitários adequados que levassem em consideração a necessidade dos indígenas em poder cuidar desses corpos com a dignidade que eles merecem", analisa o antropólogo Antonio Guerreiro, que trabalha com os indígenas há anos no Xingu.

Enterrar um parente em um cemitério comum, na cidade, é uma violência cultural tremenda para boa parte dos indígenas, como no caso do Xingu. "Isso é uma coisa degradante, não poder enterrar um parente na aldeia. Isso foi pouco discutido e levou a conflitos evitáveis", diz Guerreiro. Questão complexa que precisou da interferência do Ministério Público Federal, em diversos casos, para que os direitos indígenas fossem minimamente assegurados.

Para o MPF, o protocolo do Ministério da Saúde "não tratou das especificidades dos povos tradicionais e deixou de trazer previsões aptas a garantir que o enterro de seus membros seja realizado com base em seus costumes e tradições". Impedir que os indígenas exerçam esse direito "é uma maneira de violentá-los e de privá-los de sua forma de se despedir de seus entes queridos, o que é vedado pela Constituição da República e pelas normas internacionais de Direitos Humanos".

Ainda assim, tratar os seus mortos segundo usos e costumes tradicionais continua a ser fonte de debates, divisões e conflitos. "No fim, cada povo do Xingu decidiu seu próprio protocolo. Alguns não conseguiram definir nenhum método. Então decidiram fazer como acharam melhor dentro do que consideraram possível", afirma o antropólogo Antonio Guerreiro.

Ritual do Kuarup teve de ser suspenso

2 - Hilda Azevedo. - Hilda Azevedo.
Kuarup em aldeia Kamayurá, Parque Indígena do Xingu (MT).
Imagem: Hilda Azevedo.

O Kuarup talvez seja o ritual indígena mais famoso no Brasil. Celebrado em homenagem aos mortos ilustres celebrados pelos povos do Xingu, o ritual acabou sendo suspenso pela maioria dos povos do Xingu em 2020, em função da pandemia. Alguns, como os Kalapalo, insistiram em fazê-lo, mas acabaram com uma versão reduzida dessa grande festa que leva meses de preparação e reúne representantes de todas as aldeias do Xingu.

O rito envolve a figura de Mawutzinin, o demiurgo e primeiro homem do mundo na mitologia xinguana. Troncos de madeira representam cada homenageado. Em torno deles, a família faz uma homenagem aos mortos, passando a noite acordados, chorando e rezando pelos que se foram.

Todo corpo é limpo, preparado e pintado com motivos tradicionais. Cada pessoa é enterrada em um ponto específico da aldeia de acordo com a sua idade e importância social. Os chefes são enterrados no centro da aldeia. Tudo é normalmente realizado por parentes.

A duração do luto também varia. É um processo complexo que pode durar um longo ciclo que começa com a morte e termina no Kuarup. A separação da alma do corpo leva tempo. A ligação de saudade entre a pessoa que se vai e as que ficam precisa ser desfeita para que cada um siga o seu destino. O Kuarup celebra esse ciclo. A passagem final.

No passado, o Kuarup era feito de acordo com a necessidade. Hoje, ocorre anualmente ou até em mais de uma edição por ano. Nos anos 90, por exemplo, não era assim, relata Watatakalu. "Desde que eu nasci até os meus 10 anos, só vi um Kuarup acontecer na minha aldeia. Hoje em dia são vários por ano. Eu nunca vi tantos Kuarups."

Embora respeite as diferenças, Watatakalu diz que prefere manter as tradições. "Essas coisas têm mudado, foge das nossas regras. A cultura sempre está mudando, mas eu sou do tipo que quer manter o original", diz.

No caso da aldeia em que ela vive, o Kuarup da sua avó previsto para 2020 foi adiado para este ano para não ter aglomeração. Outros mantiveram o rito.

"Para mim, não era momento de festa. Para a família não é festa. Não era o momento de celebração, renovação, não era. Era de recolhimento, proteção. Quem fez, não fez um Kuarup normal. É preciso ter todas as etnias reunidas. Não dá para fazer apenas entre as pessoas da sua aldeia", relata Watatakalu.

3 - Hilda Azevedo. - Hilda Azevedo.
Kuarup em aldeia Kamayurá, Parque Indígena do Xingu (MT).
Imagem: Hilda Azevedo.

Ao mesmo tempo, o Kuarup vem também sofrendo influência do turismo feito pelos brancos, que chegam a comprar "pacotes" de visitação. Mesmo com a pandemia no Brasil ainda longe do fim, já há pacotes turísticos sendo vendidos para Kuarups no Xingu em julho. Viver o luto, uma particularidade de cada um, acaba não sendo respeitado.

"Kuarup é trabalho. É muito caro. O anfitrião arca com tudo, com o transporte dos convidados, a alimentação, é uma dedicação de 6 meses, muito cansativo", conta Watatakalu. "Antigamente era de dois em dois anos ou até mais. Hoje em dia acontece sempre. É influência da cultura de fora, o turismo é muito forte. Meu pai dizia: o papel dos brancos é muito poderoso, o dinheiro é um veneno que vai contaminar nosso povo um dia. E você vai ver aquilo que não é normal acontecer. Realmente, tudo isso está acontecendo."

O antropólogo Antonio Guerreiro, que trabalha com os indígenas há anos no Xingu, concorda que, de fato, a temporalidade mudou. "Houve um processo de intensificação de festas por influência externa. Hoje há muito interesse político, midiático, de personalidades", afirma, mas que ao mesmo tempo ter que cancelar o Kuarup em 2020 não foi um processo "tranquilo" para os indígenas.

"O grande problema, falando do ponto de vista das pessoas com quem eu conversei, é manter as pessoas em luto. Enquanto você não faz o ritual, a família permanece enlutada", relata.

Em 2021, os indígenas estão divididos em relação ao Kuarup. Enquanto alguns povos do Xingu tentam se programar para realizar o Kuarup, outros mantém o ritual suspenso.


(Por Mauricio Angelo )

Esta reportagem foi financiada pelo COVID-19 Emergency Fund for Journalists, da National Geographic Society.

Notícias da Floresta é uma coluna que traz reportagens sobre sustentabilidade e meio ambiente produzidas pela agência de notícias Mongabay, publicadas semanalmente em Ecoa. Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.