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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quantas histórias de pais trans você leu ou viu ontem? Nós existimos!

Danny Wakefield faz ensaio gestante em banheira - Reprodução/Instagram
Danny Wakefield faz ensaio gestante em banheira Imagem: Reprodução/Instagram

15/08/2022 05h00

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Ontem foi Dia dos Pais, e eu sei que para muitas pessoas, essa é uma data delicada pois "se assumir pai" ainda continua sendo uma opção no Brasil. O abandono parental acontece mesmo quando existe um nome na certidão de nascimento, ou quando o "paizão" glamouriza a pensão que não dá para sustentar criança nenhuma, mas serve para justificar a sua ausência na vida do filho. E o "paizão" ainda acredita que a mãe está usando "todo aquele dinheiro" para se entupir de quinquilharias na Shopee ou de blusinhas da Shein.

Essa data é delicada para quem desempenha o papel de mãe solo, é delicada para a criança que passa pelo abandono parental, e é delicada para o adulto também. Como eu, que adulto precisei passar por cima de várias cicatrizes, e me deslocar Estados e quilômetros de distância, para enterrar aquele que optou por ter uma vida sem mim. E demonstrar para ele, como última coisa antes dos seus 7 palmos do chão, algo que ele nunca demonstrou em vida por mim, mas que eu tive a oportunidade de dar a ele, mesmo que em morte: consideração.

Ainda assim, é uma data de celebração. E ok, sabemos de todo o interesse comercial por trás dela. Mas não é nisso que eu quero focar. Eu quero focar no lado emocional e significativo desta data. Quero focar em falar sobre "o ontem" de um lugar onde muita gente, como eu, prometeu ser melhor do que "seu exemplo". De quem se esforça diariamente para não cair naquela besteira de ser "quem ajuda a mãe", mas sim em quem está desempenhando a paternidade da melhor forma que consegue, de uma maneira igualitária quando existe ali outra pessoa desempenhando a parentalidade junto, em busca de alinhamento para que aquela criança sinta, acima de tudo, amor.

E são estes os pais que pudemos ver representados nas homenagens de propagandas, nas celebrações dentro de empresas, nas capas de reportagens de revistas, e nos programas de televisão. Este foi o Dia dos Pais deste ano, tal qual o do ano passado, e do anterior também. E aqui eu te pergunto: quais são estes pais?

Eu sou um homem trans. E sou um homem trans que é pai. E honestamente eu gostaria de saber se você me viu em alguma propaganda, em alguma reportagem, em alguma homenagem na empresa em que você trabalha. Aliás, você me tem, um homem trans pai, como colega de trabalho?

Você pode não ter me visto, não ter visto o Lorenzo, não ter visto o Roberto, não ter visto o Cézar, e tantos outros homens trans que são pais como o Noah. E não porque a gente não existe, porque sim, eu existo e estou aqui escrevendo para você, mas sim porque nós não somos lembrados, muito menos celebrados, em uma sociedade que tem uma raiz muito forte chamada "transfobia".

Homens também podem engravidar, e não daquela forma caricata e sem graça do filme dos anos 90 que você ri até hoje. Homens trans podem engravidar e gestar seus próprios filhos e desempenhar o papel de pai. Assim como homens trans podem ter tido filhos antes de passarem pelo processo de transição social onde se identificam enquanto homens, e desempenharem o modelo de parentalidade que faz sentido para a sua família.

Comigo, foi assim. Da minha filha mais velha eu engravidei e dei a luz, e mesmo sendo homem, eu desempenho para ela a figura e o papel de mãe. E isso tudo muito baseado no que faz sentido para ela, que possui um pai presente que desempenha essa figura e esse papel. Para ela, não tem problema nenhum "mãe" ser homem. Vou confessar que quem teve problemas com isso fui eu, quando descobri minha gestação e, assim como você pode pensar, vinculei o papel de mãe ao gênero "mulher", e senti como se carimbassem a minha existência com este gênero para sempre, me sentindo sufocado por acreditar que nunca mais na vida eu poderia ser quem sempre fui. Mas ainda bem que eu aprendi que essa figura não tem gênero, e que minha filha vai continuar me olhando com a mesma admiração que me olha desde que nasceu.

Acontece, que como eu estava contando para você, eu também sou pai. Exerço essa figura e este papel para a minha filha mais nova, que eu conheci bem pequenininha através da mãe dela, em um outro relacionamento passado meu. Assim como comecei o texto, a minha filha mais nova não possuía registro de paternidade, nem a presença de um pai. Eu lembro que quando a conheci, eu olhava para ela e ela me lembrava tanto de mim, que não era uma escolha registrá-la como minha filha no cartório, era um ato inevitável tamanha a conexão que eu senti por ela. Eu fazia questão de ter aquele amor escrito em um papel assinado por um juiz.

Eu sou pai dela porque eu vi eu mesmo nela. E nesse processo meio "não sei que botões apertar, mas quero que ela goste de mim", eu confesso que ganhei aquele toquinho de gente, que ainda nem falava, com alguns pacotes de bolacha Passatempo. E é isso, o tempo passa. E ela passou comigo a minha transição social de gênero, e desde a primeira vez que me chamou de pai, não parou nunca mais.

Tenho certeza de que você não viu essa história sendo homenageada por nenhuma mídia, nem celebrada por nenhum grande veículo de comunicação. Assim como sei que a empresa que você trabalha não saberia o que fazer nem com o homem trans que engravida, nem com o homem trans que adota, em questões relacionadas a acesso à direitos, políticas inclusivas, e principalmente, à saúde. Ou você, que nem sequer imaginou uma família assim, em algum momento parou para pensar o quanto de preconceito no acesso à saúde um pai trans grávido precisa passar pelos 9 meses de gestação? Ou veio a pensar no que acontece com ele, e sua configuração familiar, após o parto?

Então quando eu perguntei que pais celebramos ontem, agora, sabendo que você conhece a resposta, eu gostaria de te convidar para nos tornar visíveis também. Nos tornar merecedores de propagandas, de campanhas e de processos que garantam a nossa saúde e bem-estar, na sociedade e no mercado de trabalho. Porque sim, nós, pais trans, existimos. E devemos ser tão respeitados quanto os pais cis que você todo ano celebra neste dia.

Das coisas mais bonitas que gosto de contar quando falo da filha que sou pai, é de que ela aprendeu a falar comigo. Aprendeu nas nossas longas jornadas dentro do carro, da escolinha que ficava longe, até em casa, onde eu vinha conversando com ela por medo dela chorar. Qualquer coisa que passasse na rua, eu puxava um assunto.

Hoje, cada "pai" que ela diz é carregado de um pensamento rápido para tentar inventar uma história, e me ter mais um pouquinho perto dela. É irônico que ela use a mesma tática que eu usei com ela quando a conheci, e tudo vira assunto também. Mas agora não precisamos mais de um pacote de bolachas Passatempo para ficar tudo bem.

E quer saber? Ela nem chorou. Ela na verdade, me fez pai.

Essas histórias não podem ficar invisíveis ou passíveis de violência só porque a sociedade ainda não entendeu que o que importa, do começo ao fim, é o amor.

Afinal, o tempo passa, e eu espero que ano que vem nós, homens trans pais, recebamos nesta data, toda homenagem e acolhimento que a gente sempre mereceu.