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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quando você descobriu ser da raça branca?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

01/08/2022 06h00

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Você sabia que apenas quatro em cada dez famílias têm acesso pleno à alimentação? E que quando entramos mais a fundo nos dados da pesquisa do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto Covid-19 no Brasil, identificamos que a "fome tem cor"? Afinal, em domicílios onde vivem pessoas pretas e pardas, seis em cada dez famílias estão em algum grau de insegurança alimentar.

Essa pesquisa, está muito próxima de uma outra, do IBGE, que também foi publicada recentemente. E vou te mostrar que não há coincidências aqui: nos últimos 10 anos, a população autodeclarada preta no país cresceu 32,4%, e a autodeclarada parda, 10,8%.

Para quem não está ciente, para o IBGE, quando falamos de pessoas pretas e pardas, estamos falando da soma das pessoas que são consideradas negras no Brasil.

Existem vários fatores que direcionam os motivos desse crescimento, mas o mais evidenciado é a população se entendendo enquanto raça, em um país onde a cultura do embranquecimento, a tentativa de apagamento deste assunto, o preconceito, e as dadas consequências de ser uma pessoa negra no país (conforme comentei no início desta coluna) fizeram com que as pessoas não soubessem ou quisessem ser quem são.

E por isso eu quero compartilhar com vocês uma história sobre "se descobrir negro", em um país onde ninguém nunca precisou se descobrir "branco". Quando falamos de raça por aqui, o senso comum faz com que pessoas brancas não precisem se descobrir nada, pois elas são tidas como "o normal".

Quando eu era pequeno, e por tradição familiar, íamos à igreja. Era um hábito de praticamente todas as manhãs de domingo. Eu só conseguia escapar se fingisse, e muito bem, alguma doença. Quando eu conseguia encenar a ponto de convencer, eu ficava me achando o máximo. Além, é claro, de atingir meu objetivo: não precisar ir naquele lugar que não me representava.

Hoje, sendo mãe e pai de duas crianças, eu aprendi muita coisa! Dentre elas, uma coisa que entendi, é que com certeza minha mãe sabia que eu estava fingindo. Eu fingia que contava a verdade, ela fingia que acreditava, e eu escapava da missa de domingo.

Só que isso raramente acontecia, mesmo que todo domingo eu tentasse a mesma coisa. No fim, lá estávamos nós na igreja.

Houve o período então que era necessário "se confessar", e contar os pecados para o padre, quando eu nem sabia filtrar o que seriam os tais pecados. Se eu seguisse essa religião atualmente, eu sei que teria que confessar ao padre que mentia para não ir na missa. Bom, no fim das contas, estou aqui confessando para você.

Voltemos, então, ao confessionário. Lá estava eu pensando em algum pecado para receber as consequências. Entendam a narrativa a partir da minha identidade de gênero da época. E eu disse o seguinte: "padre, meus colegas da escola me chamam de 'neguinha', e eu confesso que não gosto da minha cor e do meu cabelo."

A resposta dele hoje me choca muito. Ele disse: "perdoe seus colegas e reze 10 'Pai Nosso' e 10 'Ave Maria'." Assim o fiz, sentado no banco ainda dentro da paróquia. Hoje, penso que deveria ter me esforçado mais na encenação para não precisar ter pisado num lugar que reforça o racismo, culpabiliza a vítima, e reproduz tantos outros preconceitos.

E assim eu fui anulando quem eu era, mesmo que em uma de minhas carteiras de identidade estivesse lá escrito, por outra pessoa, na minha identificação de raça: pardo.

Foi um longo caminho até chegar num lugar de entender que se alguém tem algum problema com a minha cor, o problema não está comigo, e sim com essa outra pessoa. Racismo é crime, e não são 20 preces que vão resolver qualquer preconceito. Se tivéssemos encontrado outras maneiras de enfrentá-lo lá atrás os números do início dessa coluna provavelmente seriam outros.

É impossível olhar para as minhas filhas hoje e não lembrar das minhas tentativas de fugir da missa, de não tentar construir algo diferente do que eu mesmo vivi. Empodere as crianças não brancas a se amarem. O resto do mundo tenta de todas as formas fazer com que essas crianças se odeiem. E isso é estratégia de uma sociedade estruturalmente racista para não nos unirmos e não prosperarmos. O auto-ódio pode permanecer por anos.