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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A opressão em um mundo que justifica tudo, menos que nossa tolerância acabe

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Imagem: iStock

07/03/2022 06h00

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Já faz um tempo que eu não tenho conseguido deixar de perceber cada ato de opressão que ocorre à minha volta. Não sei dizer se há alguns anos eu não notava, se piorou mesmo, ou se realmente fui tantas vezes atingido que passei a viver em estado de alerta. Ironicamente, nos meus trabalhos por inclusão, muitas pessoas elogiam a minha capacidade de explicar com calma, educar e ter paciência com quem não está por dentro de determinados assuntos. Então eu resolvi te contar como isso tudo se encaixa, citando algumas referências de opressões.

O cantor Baco Exu do Blues deu ao seu último disco o nome "QVVJFA?". É uma abreviação do seguinte questionamento: quantas vezes você já foi amado? Para pessoas que têm o afeto negado, pessoas negras, pessoas com deficiência, travestis etc., cada música deste disco é um tapa diferente. É um processo doloroso de auto reflexão e de identificação de a quantas violências nós fomos submetidos para nos encaixarmos em um "possível amor".

Ambientes públicos nos impedem de acessar um local que possui uma única finalidade, fisiológica, humana, que deveria ser direito de todas as pessoas: usar o banheiro para urinar. Não nos permitem existir, aos gritos e protestos, ou com a falta de adaptações arquitetônicas.

Stefano Volp lançou uma nova edição do livro "Homens pretos (não) choram". Uma coletânea de contos protagonizados pela opressão social colocada na performance do homem "não branco", e tudo que ele não consegue ou não pode ser. Contos que nos escurecem motivos de agirmos sem querer agir, em um piloto automático do que fomos programados para ser.

Locais cheios, barulhentos, "desorganizados", que por lei possuem indicações de mecanismos inclusivos, como caixas preferenciais de supermercado, que desvalidam o nosso pertencimento porque não parecemos "tão necessitados" àquilo que nos é um direito. Se passamos despercebidos, por que seríamos considerados para aquele mecanismo de inclusão?

Tudo isso parece uma série de exemplos desconectados. Mas deixa eu te conduzir pelo fio que amarra isso tudo, que é a minha vida.

Quando Baco me questiona quantas vezes eu fui amado por ser quem sou, a primeira coisa que me vem à cabeça é quando, ainda casado, já dando alguns sinais de quem eu havia entendido que era, abordei qual seria o único motivo que causaria o término definitivo do nosso relacionamento. A resposta foi a seguinte: se você fosse homem. Quando eu fiz essa pergunta eu já sabia que era homem, e eu cogitei, por considerável tempo, não ser, por causa dessa resposta. E essa resposta foi seguida por tantos outros "desamores", que hoje consigo perceber, como a intolerância ao cheiro do desodorante masculino, ou ironicamente, a forma que eu performo a masculinidade que às vezes "parece gay demais". Tantas outras vezes que não fui amado.

Os banheiros públicos então são um problema desde que precisei acessar um pela primeira vez após me identificar socialmente como sou. As pessoas não me permitiam o acesso porque eu "não me parecia" com um homem, me fazendo passar 8 horas de trabalho sem consumir um gole de água sequer. E banheiros são um problema até hoje - mesmo que pela minha barba crescida eu consiga entrar, o que me impede é a estrutura física, que não entende que nem todos os homens usam mictórios. Eu não uso mictório e muitas vezes não há alternativa para mim.

Em um dos contos do livro que citei de Volp, um personagem demonstra constantemente uma agressividade que qualquer pessoa julgaria. Quem se pergunta o que leva um homem preto a performar esse comportamento? Quem se pergunta se ele é feliz assim? Esse conto me atravessa de uma forma muito particular pois a minha filha mais velha já disse, mais de uma vez, que tem medo de mim porque eu grito. E eu não sou feliz assim, gritando, sendo agressivo. Essa não é a pessoa que quero ser.

Pouquíssimas vezes eu faço uso de caixas preferenciais pois entendi, de forma totalmente equivocada, que eles não eram pra mim se eu conseguisse suportar o ambiente. Mas as idas ao mercado, ainda que mais escassas pela questão da pandemia, também se tornaram extremamente desafiadoras pelo meu "desacostumar de suportar" a desorganização e movimentação à minha volta. E eu já precisei recorrer a eles, sabendo que mesmo com a indicação de acessibilidade não apenas para pessoas idosas ou gestantes, mas também para pessoas autistas, existiriam olhares de julgamentos como se eu estivesse em um espaço que não é para mim. Julgamentos das outras pessoas que possuem o mesmo direito de acesso a este mecanismo de inclusão.

Então depois de ser seguido pelos corredores, julgado por aparentemente estar me aproveitando de um lugar que não me pertence, eu ainda sou desvalidado pela pessoa atendente ou segurança que indica que aquele caixa é preferencial, me obrigando a abrir em alto e bom tom o meu direito de uso apontando para a placa que torna visível a neurodiversidade que ninguém vê. Em um mesmo lugar eu sou oprimido pela diversidade visível que carrego no corpo, e oprimido pela diversidade invisível que carrego na mente.

E enquanto tudo isso acontece eu escrevo aqui sobre como você pode ser uma pessoa aliada à diversidade, trabalho processos humanizados que possibilitem a entrada de recortes sub-representados no mercado de trabalho, potencializo oportunidades para quem foi excluíde por ser quem é, ensino como diferentes áreas, cargos e lideranças devem agir para tornarem as empresas inclusivas, e sou reconhecido pela minha didática, pela minha disponibilidade, e pela minha paciência.

Ao mesmo tempo em que tolero a transfobia institucional das organizações, lido também com a homofobia no estereótipo da performance de gênero, o racismo estrutural em absolutamente tudo, o modelo de maternidade que contempla e acolhe só outro gênero, a masculinidade tóxica que despeja todo o peso de como devemos ser, o feminismo trans-excludente que me impede de acesso aos espaços públicos, o capacitismo que julga e exclui as diversidades invisíveis, e tantas outras microviolências que pessoas com atravessamentos de marcadores sociais como eu passam diariamente.

Mas quem vai entender tudo isso?

Quem vai acolher a maternidade de um homem trans?

Quem vai continuar fiel a alguém a cujo gênero não se atrai?

Quem vai problematizar que o papel social de provedor é despejado como uma obrigação?

Quem vai empatizar com a responsabilidade de precisar fazer tanta coisa que não se quer?

Quem vai entender a solidão constante que faz gritar?

Quem vai defender o acesso a uma necessidade fisiológica humana?

Quem vai olhar sem julgar?

E o mais complexo de tudo: quem entendeu, sem eu precisar explicar, a responsabilidade de precisar tolerar?

É preciso tolerar porque do contrário seremos taxados de violentos, mesmo que a violência tenha sido tudo que a gente já sofreu.

Se eu consigo (sobre)viver em estado de alerta e não reagir a todas essas violências para que você tenha espaço e tempo para se tornar uma pessoa melhor, você não tem desculpa para não começar agora.