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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O sistema que oprime Elliot Page, Lil Nas X, eu e você

Elliot Page chega para baile do MET 2021, em Nova York - Sean Zanni/Patrick McMullan via Getty Images
Elliot Page chega para baile do MET 2021, em Nova York Imagem: Sean Zanni/Patrick McMullan via Getty Images

20/09/2021 06h00

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Nesta última semana, dois eventos aparentemente completamente desconectados me fizeram refletir sobre o quão ligados estavam, sobre a ótica da toxicidade imposta sobre as performances de gênero.

No MET Gala, o ator Elliot Page foi alvo de piadas por conta do terno que usou ao pisar pela primeira vez em um tapete vermelho após a sua autodeclaração enquanto uma pessoa trans. Sua masculinidade foi questionada por conta da sua aparência, por que um terno não lhe caiu bem aos olhos da sociedade — sociedade esta que possui um padrão bem definido do que é ser homem, seja em como se portar, agir, ou se vestir. Obviamente muitos comentários foram transfóbicos, mas antes de serem transfóbicos, tais comentários reforçavam um estereótipo a respeito da expressão de gênero: Elliot Page "não parecia homem".

O segundo evento foi o anúncio do álbum do cantor Lil Nas X, que protagonizou o lançamento do álbum metaforizando-o como uma gestação, com direito a uma barriga falsa, uma sessão de fotos, e uma tonelada de críticas. Novamente a questão da masculinidade foi colocada em pauta, agora com um homem cis, com direito a comentários de "como eu vou explicar isso para meus filhos".

Duas situações de contextos completamente diferentes, mas com uma cobrança igual por uma performance de gênero tida como normal, independente se esse homem é trans ou cis. Confesso que, enquanto homem trans, fiquei em choque quando percebi que nesse atravessamento a transfobia não foi o primeiro marcador e, sim, a masculinidade tóxica, e como a sociedade espera que sejamos.

A expectativa da sociedade de padronizar a humanidade, seja fazendo chacota com a imagem de como um terno ficou em um homem trans, seja com a imagem de um homem cis grávido, é a mesma sociedade que também critica um homem trans grávido, e um homem cis sem terno no tapete vermelho.

O ponto de atenção aqui é a gente conseguir perceber qual o cerne da questão. Sem ele, muita discussão acabou sendo gerada em torno de possíveis atos transfóbicos, sem a real problematização da causa raiz. Não há como negar que pessoas trans se sentiram de alguma forma atingidas por ambos os eventos, e nem podemos relativizar tais sentimentos, mas é preciso ter muita cautela. Ser uma pessoa trans, que inevitavelmente rompe com a normatividade de gênero, e ao mesmo tempo criticar qualquer uma das duas imagens, que desconstroem tais estereótipos, é no mínimo contraditório.

Colocar a gestação como algo "imaculado" acaba reforçando expectativas sobre corpos que podem gerar, da mesma forma que a masculinidade tóxica reforça qual deve ser o caimento de um terno.

Vocês podem perceber a delicadeza da questão pela quantidade de "reforços" que acontecem, quando, na verdade, para uma sociedade de livre expressão e existência, deveríamos estar todes focades em romper padrões, e não reforçá-los, sejamos pessoas cis ou pessoas trans.

Precisamos ter muito cuidado pois se a transfobia não é o cerne da questão, e sim os estereótipos de gênero e suas performances na sociedade, em situações em que o cerne for a transfobia e precisemos apontá-la, talvez o uso do seu conceito já esteja tão gasto que ele não mais nos servirá de nada. Lutamos muito para chegar a um local em que a transfobia possa ser considerada para colocarmos tudo a perder por falta de aprofundamento nas questões que permeiam gênero.

Sejamos cis, ou sejamos trans, se cobramos determinada expressão de gênero normativa, seja para um, seja para o outro, não estaríamos recorrendo ao mesmo sistema que nos oprime?