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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Você que não tem tempo, ou ele que não tem tempo para você?

Getty Images
Imagem: Getty Images

12/04/2021 06h00

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Todo mundo diz que devemos aprender com as crianças. Mas ao mesmo tempo que a gente pensa nesse "todo mundo", a gente não sabe quem eles são. Só que no fim das contas, é bem provável que "todo mundo" sejamos nós mesmos, e que o tempo seja a lição.

Hoje eu quero compartilhar com vocês uma história sobre uma encruzilhada entre o tempo e a infância, pois, acredite, tem tudo a ver. Tanto para o tempo, quanto para você, que está dedicando um pouco dele aqui nesta coluna.

A minha vida é dominada por uma rotina insana, em que a toxicidade que aprendi nas relações trabalhistas me faz me cobrar por produtividade, responsabilidades, pela busca por reconhecimento, pelo estresse da frustração quando nada disso aparenta dar certo, e principalmente, pelo peso e o medo de não poder sustentar tudo que vem com a vida adulta. Há pessoas que me conhecem muito bem que dizem que eu sou assim: gosto de estar em meio ao caos, ao ponto de eu mesmo buscar por ele.

É irônico ouvir que é satisfatório algo que, em senso comum, é uma violência que não desejaríamos para nós mesmos. Mas eu não tenho tempo para discordar. E a verdade é que o caos de estar lutando contra o tempo foi a forma com que muitas pessoas aprenderam a lidar com as cobranças da vida, como aquele boleto atrasado que fica mais caro a cada dia você demora para pagar. Então, a gente aprendeu que a pressa é aliada da responsabilidade.

Mas, em paralelo à minha rotina diária, ontem pela manhã, minha filha mais velha que costuma fazer tudo devagar demais na minha noção de tempo, me escutava dizer, como digo todos os dias, para que tomasse logo o seu café da manhã. E indiferente a isso, lá estava ela, se balançando lentamente na cadeira giratória, ignorando o meu apressar, como qualquer pessoa costuma fazer quando algo não lhe parece fazer sentido: afinal, qual seria a pressa dela? A rotina insana é só minha. Porém, quando ela terminou e o som do rangido giratório da cadeira cessou, ela interrompeu o meu caos temporal para dizer que existiam 36 comprimidos dentro do organizador de remédios — de onde, diariamente em minha minha rotina matinal, tiro um comprimido para me despertar, dois para tentar me acertar com o meu próprio tempo, outro para não me deixar dormir, outro para lidar com a rotina frenética e assim por diante. Esses, eu aprendi a engolir em um gole só, quase como uma metáfora do que faço com as adversidades que se seguem na minha manhã enquanto ela conta comprimidos. Um único gole, à trilha sonora do tic-tac daquilo que eu preciso ser, que marca o início das horas que não têm hora para terminar.

Só que neste dia, eu dei um pause no instinto primário que me faria perguntar o que levaria alguém a perder tanto tempo contando comprimidos. Nessa manhã, eu não tomei os comprimidos, tomei um tempo. Um tempo para pensar justamente sobre ele, e a relação que por pressões sociais acabamos por construir, descompassadamente. A pressa, a rotina, os pulares de almoço, e as horas que passam e parecem poucas para tanta coisa. Percebi isso: enquanto eu estava parado, pensando no tempo - e inevitavelmente pensando que eu estava perdendo tempo por estar pensando nele - ele estava passando, e passando sem mim.

Percebi que o tempo não tem tempo para esperar por mim, que ele vai passar de qualquer jeito, esteja eu atrás dele ou ele atrás de mim. E nessa corrida, por mais que eu sacrifique cafés da manhã, não vou ganhar. Ele é o dono de tudo que tenta o dominar, e é preciso passar a vê-lo não como um inimigo, mas como aquele aliado que nos permite momentos de paz. Ainda que paz seja poder se sentar tomando café e contando comprimidos que não são seus.

Mas ainda ali, absorto em pensamentos, reconheci que a minha filha estava certa: o tempo não é dela. E, por não tentar controlá-lo, ele também não a controlou. Ela aceitou o tempo dele, e ele aceitou o tempo dela, e ali, naqueles momentos de café da manhã, eles parecem andar, calmamente, juntos.

Talvez um dos grandes problemas de tentar competir contra o tempo seja esse: ele nunca estará contigo. O que resta é atraso e solidão.
Confesso que invejei minha filha e a capacidade de ter o tempo a favor dela para tomar seu café da manhã, deixar cair o talher, olhar para a árvore que balança com o vento, espumar a esponja da louça. E, enquanto isso, respirar fundo e em paz, despreocupada sobre o tempo que levaria para reaver o pé do chinelo que o cachorro pegou. Ao escrever sobre o respirar fundo dela, sinto que respiro também. Obviamente não tão fundo, nem tão sem pressa, assim como você deve estar fazendo agora também.

Acho que chegou a hora de desacelerarmos. De admitirmos que enquanto estamos correndo atrás do tempo, ele continua o mesmo. Segue sendo tempo através de nós. Talvez contar comprimidos calmamente de manhã seja o que todos devemos passar a fazer. Ou talvez possamos fazer melhor: parar de tentar alcançar o que não nos pertence e usar essa paz para deixar, de vez, os comprimidos do inalcançável para trás.