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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Uma visão futurista para sairmos desta crise planetária

Cena do filme "No Mundo de 2020" (1973) - Divulgação
Cena do filme 'No Mundo de 2020' (1973) Imagem: Divulgação

27/02/2022 06h00

Diversas histórias de ficção científica previram o futuro com décadas de antecedência. Esses exercícios de imaginação chegaram até a guiar inovações científicas, quando os autores estavam bem informados em suas projeções — por exemplo Arthur C. Clarke, conhecido pelo livro que inspirou o filme "2001 - Uma Odisseia no Espaço".

Recentemente, um filme de 1973, "No Mundo de 2020", foi relembrado por ter antecipado com assustadora precisão muito do caos que já começamos a experimentar.

Um novo subgênero literário, o solarpunk — com destacada influência brasileira —, também está contribuindo para as visões de como seria um mundo onde conseguimos transcender nossa espiral descendente de autodestruição. Esse ramo é um braço de outro gênero literário recente, a ficção climática (cli-fi, em inglês), cujo autor mais popular, Kim Stanley Robinson, está até influenciando governantes e líderes globais. Entre os fãs de seu livro mais recente, "Ministry For The Future" (Ministério Para o Futuro), estão Barack Obama e Christiana Figueres, que liderou os esforços para o Acordo de Paris. A revista Time chegou a publicar que todo legislador deveria ler essa ficção.

Não é à toa. Essa história contém provavelmente o mais completo conjunto de soluções realistas e bem informadas sobre como a civilização humana poderia ser preservada diante do atual colapso climático e ecológico no planeta e todas as suas consequências, que afetam praticamente todos os aspectos da vida humana.

No entanto, como sempre gostei de ficção científica, confesso concordar com aqueles que chamam Robinson de um "escritor meio careta". Imagine diversas páginas tentando tornar interessante uma reunião tecnocrata — é por isso que "Ministry For The Future" fez sucesso entre diplomatas e políticos. Para quem gosta de histórias que explodem a mente, como as de Philip K. Dick, Ursula Le Guin, William Gibson ou Jeff Vandermeer, o livro pode ser meio decepcionante.

Mas seu mérito não está exatamente na criação de um mundo e personagens extremamente envolventes que nos forçam a absorver as páginas compulsivamente. O livro soa mais como um documentário feito em 2071 sobre como a humanidade conseguiu sobreviver ao caos do colapso socioambiental planetário. Nesse aspecto, é um relato muito convincente sobre todos os aspectos desta crise de todas as crises.

A influência desse livro entre líderes mundiais demonstra que ele transcende a literatura, tendo o poder de afetar decisivamente o modo como imaginamos e criamos o mundo. Por isso, vou resumir algumas das soluções-chave que aparecem nesse futuro clássico, onde a distopia vira utopia, em uma grande história de mitigação e regeneração.

"Ministry For The Future" gira em torno de uma nova agência da ONU, o Ministério Para o Futuro, criado para representar os interesses dos futuros habitantes do planeta. Esse órgão não é o único responsável pelas mudanças que, ao longo de quatro décadas, conseguem estabilizar as condições de vida na Terra, mas a protagonista da história é a diplomata que lidera a agência. E seus esforços não se restringem aos protocolos, já que o órgão possui braços que operam nas sombras.

Uma inovação-chave para a transição é a adoção de uma criptomoeda — porém, com manutenção sustentável — como sendo a nova moeda global. Seu valor é baseado na quantidade de carbono que não é queimada, ou seja, quanto menos CO2 for descarregado na atmosfera, mais ela se valoriza. Assim, há um irresistível incentivo financeiro para uma economia global regenerativa. Por ter processamento blockchain, ela é 100% rastreável e transparente, o que acaba com a ocultação de riquezas e a evasão de impostos em paraísos fiscais. Os bancos centrais do mundo são forçados a apoiar a tecnologia devido a um colapso financeiro mundial. A desigualdade e a concentração de riqueza diminuem, junto com as fontes de energia destrutivas.

No livro, outra tecnologia-chave para nosso futuro é a gradual extinção das redes sociais operadas por corporações bilionárias. Todas as grandes redes são clonadas em versões livres, sem fins lucrativos, no modelo Wikipedia, onde os usuários têm privacidade total, sem manipulação algorítmica, e podem optar por vender seus dados para as grandes empresas.

Já diante da crise humanitária e social causada pelos bilhões de refugiados climáticos migrando para o Norte Global, no final, os países mais ricos precisam concordar em abrir suas fronteiras completamente. Isso é parte do pagamento da dívida histórica que essas nações têm com o Sul Global, cujos países contribuíram muito pouco para as mudanças climáticas mas são os que mais sofrem com elas.

Quando o colapso começa a mostrar sinais de recuo, um intenso movimento por reflorestar metade do planeta tem início. Como na maior parte das medidas que aparecem nessa história, essa proposta não é ficção, mas foi difundida pelo lendário biólogo Edward O. Wilson, falecido recentemente. Ao final, o nível de regeneração e respeito pela vida, medido pelas áreas com vida selvagem abundante, é muito maior do que no início.

A mentalidade que desencadeia esse processo surge da adoção massiva de uma nova "religião" global, que na verdade não tem nada de nova e nem de religião, mas é uma das comunhões mais antigas que conhecemos: a devoção e gratidão à Terra como sendo um princípio maternal. Como diz uma personagem: "Tudo o que vive na Terra compartilha cruciais 938 pares-base de DNA". Ou seja, microorganismos, plantas, animais etc., todos nós realmente somos irmãs e irmãos, tendo a biosfera deste planeta como mãe, da qual somos meras expressões.

Como já mencionei diversas vezes nesta coluna (por exemplo, aqui e aqui), também acredito que essa obviedade para à qual nos cegamos poderia estruturar um final feliz para toda essa destruição, se incorporássemos essa visão de unidade da vida em nossas ações.

Soluções como essas, hoje, soam utópicas e idealistas. No entanto, nessa história, só se tornaram realidade diante de uma escalada de catástrofes e perdas massivas de vidas, ao longo de décadas, quando finalmente a humanidade não tem escolha, senão acordar para a realidade.

O livro abre com uma cena avassaladora: a descrição vívida de uma onda de calor na Índia que cozinha vivas mais de um milhão de pessoas. Essa foi uma passagem particularmente traumática para mim, pois morei anos na Índia e senti na pele como é quando termômetros marcam 43 graus e o vento machuca de tão quente.

O que está por vir realmente pode não ser muito diferente, mas infelizmente só começamos a levar isso a sério na iminência do tarde demais. Recentemente no Brasil, aumentou muito a discussão sobre o estado de emergência ambiental em que nos encontramos. Tragicamente, tal debate mais intenso só aconteceu devido ao desastre em Petrópolis.

Nesta segunda 28, o painel climático da ONU vai divulgar seu sexto relatório sobre a emergência climática do planeta. Ele vai conter alertas importantes, por exemplo, para o Brasil.

No entanto, a cobertura -- que já é mínima -- desse crucial alerta global inevitavelmente será ofuscada mais ainda, pela guerra da Ucrânia. Pode parecer um outro assunto, mas esse conflito está diretamente relacionado com a crise maior. Como apontou o consagrado jornalista ambiental Bill McKibben, uma parte essencial dessa guerra se fundamenta na mesma economia fóssil que está destruindo o mundo, já que o petróleo e gás fornecem boa parte da força geopolítica russa que permite essa agressão.

Há também um outro fator que deveria gerar surpresa: o que leva o presidente russo, uma das pessoas mais ricas do planeta, a buscar cada vez mais dominação? Não é estranho que consideremos isso normal?

Essa é uma busca que não tem fim, da mesma maneira como uma grande corporação jamais vai decidir frear sua expansão predatória, satisfeita com sua riqueza. Em nosso modelo de sucesso e progresso, não há fim para a ganância, cobiça e egoísmo, nem limite para a destruição a ser infligida em nome disso.

No final, o limite é a destruição de tudo à nossa volta e de nós mesmos, caso não adotemos um outro modelo de prosperidade, de como nos inserir no mundo.

Tópicos como esses — guerras, sistema socioeconômico falido etc. — e diversos outros também não poderiam faltar no livro de Kim Stanley Robinson, mas resumi aqui apenas os principais. No Brasil, ainda não há tradução para o português. Apenas uma outra ficção climática, "Nova York - 2140" (2019), foi lançada.