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Mente Natural

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O valor da natureza não está em sua utilidade

Getty Images
Imagem: Getty Images

Emersom Karma Konchog

06/06/2021 06h00

Os maiores problemas no mundo são resultado da diferença entre como a natureza opera e o modo como as pessoas pensam.

Gregory Bateson, antropólogo inglês

Como civilização, nossa atitude em relação ao mundo natural revela um senso de superioridade: nos damos o direito de lucrar com seus "recursos", causando tanta destruição que agora nós é que estamos ameaçados. Essa ilusão de grandeza chega a ter contornos pseudo-espirituais, na forma de ideias sobre a supremacia da alma humana, em relação a outros seres vivos.

No entanto, contraintuitivamente, uma visão de mundo que nos tire do centro do universo e nos integre de volta na teia da vida pode ajudar muito a corrigirmos nosso rumo autodestrutivo, inclusive trazendo uma dimensão espiritual mais em linha com a verdadeira natureza das coisas.

Vi recentemente um meme com o astrofísico Neil DeGrasse Tyson, um dos principais divulgadores da ciência hoje, em que diz: "Aceitar nosso parentesco com toda a vida na Terra não apenas é ciência sólida. Na minha visão, isso também é uma elevada experiência espiritual." Em linguagem secular, "experiência espiritual" costuma ser traduzido como "experiência de pico" pela psicologia.

É uma sensação de plenitude além de objetivos pessoais, de transcendência de tudo aquilo que normalmente nos restringe, de perceber a si mesmo como algo maior do que imaginávamos. Todos os anseios perdem a importância e é comum ficar sem entender porque há essa insinuação de perfeição. A palavra "êxtase" nas últimas décadas passou a vir carregada de conotações químicas ou hedônicas, mas na origem ela significa algo como "fora de si mesmo", ou seja, é a transcendência de nosso pequeno casulo de preocupações e conceitos sobre nós e o mundo.

Não é por acaso que esse tipo de experiência costuma ocorrer espontaneamente em meio à natureza. Obviamente que, dependendo da formação pessoal, a pessoa vai interpretar isso com tons religiosos ou não. Curiosamente, conforme estudado pelo psicólogo estadunidense Abraham Maslow, experiências de pico são raras entre pessoas que seguem uma religião institucionalizada, sendo mais comuns por exemplo entre universitários (uma pesquisa informal nos anos 1970 apontou que mais de 50% desses estudantes costumam ter esse tipo de experiência espontaneamente). Segundo Maslow, esse aspecto de nossas vidas é essencial para o desenvolvimento humano e nossa integração no mundo.

Eu adicionaria um item às anedotas sobre o assunto: Quer bloquear completamente a possibilidade de experiências de pico? Faça assim: considere-se muito importante, mais do que os outros. Se possível, restrinja suas relações a um caráter utilitário. E isso não apenas para você mesmo, mas também para sua família, seu grupo, sua espécie. Use então essa superioridade para obter vantagens. E tudo bem se isso causar problemas para os outros, afinal são os outros.

É basicamente assim que estamos vivendo. É como se o nosso "órgão de conexão natural" tivesse sido amputado. Não deveria soar como algo ameaçador deixar um pouco de lado nossa constante necessidade de autoafirmação, abrindo-se para a realidade maior que é a própria vida, da qual somos apenas parte. Mas do modo hoje como somos educados e treinados, admitir que possa haver algo valioso além de nossos anseios individuais, para muitas pessoas, se tornou algo próximo da heresia.

Ecologia profunda

Um outro exemplo: considere por um momento que florestas, matas, animais, micro-organismos, rios ou oceanos são importantes não devido à sua utilidade para nós, mas por si mesmas. Independentemente de podermos desfrutar delas — nem que apenas em contemplação estética — há um valor inerente, sem preço. Porque é a própria vida, não é preciso mais do que isso. Por exemplo, preservar florestas não deveria ser uma questão só para a economia, mudanças climáticas, de desenvolvimento sustentável, benefícios para o agronegócio etc. É uma questão de preservar a vida, que tem valor intrínseco, independente de sua utilidade. E isso basta. É o que diz a filosofia da ecologia profunda.

Soa utópico, não? Parece algo radicalmente contrário aos nossos valores, ou pelo menos, aos valores de nossa sociedade. Por exemplo, para empresários e a bancada de políticos que governa para eles isso seria algo totalmente fora de questão. "Precisamos de desenvolvimento e progresso. Se não houver lucro, para que natureza?" Antigamente, diziam abertamente: "Vamos subjugar o inferno verde. Há uma floresta no caminho do progresso." Hoje soa mal expressar-se assim abertamente, mas a mentalidade é a mesma.

O fato de que a valorização da vida pelo que ela é — e não pelo quanto podemos lucrar com ela — se tornou um sonho impossível (esse é o significado de utopia) mostra aonde chegamos, ou quão avançada de fato é nossa civilização.

Li esta semana no "Guardian" uma entrevista de um ator e ativista inglês, Mark Rylance, em que ele pede para que artistas contem mais histórias de amor com a natureza. Diz ele: "Sinto que temos que nos apaixonar pela natureza novamente; fazemos coisas incríveis um pelo outro quando nos apaixonamos. Fomos encorajados a não amar os animais, a não amar as plantas, para que nós e outros sejamos insensíveis com eles e os tratemos como produtos e mercadorias a serem usados, e isso não está funcionando."

Caso cada vez mais pessoas se abram, por um lado, para esse esplendor natural imediatamente disponível — já que nosso corpo e mente também são a natureza — e, por outro, para essa triste condição que adquirimos, então podemos tentar alterar nosso curso em favor da vida. Aí sim teremos alguma chance.