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Mente Natural

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A continuidade entre consciência e vida

Nascer do sol - Chinnapong/Getty Images/iStockphoto
Nascer do sol
Imagem: Chinnapong/Getty Images/iStockphoto

Emersom Karma Konchog

01/08/2021 06h00

O que você vê quando olha para a paisagem? Você simplesmente vê o sol nascendo ou vê o impulso flamejante do profundo mistério do universo? William Blake

O historiador estadunidense Thomas Berry usa essa citação do visionário poeta inglês em seu argumento de que, no geral, perdemos a relação de maravilhamento e espanto com nosso mundo. Entre as diversas causas da situação degradante em que nos encontramos, está uma incapacidade de realmente valorizar não apenas o que afeta nossas vidas, mas também A Vida.

Quem acompanha esta coluna, já ouviu isso de uma forma ou de outra. É o tema recorrente. É que seus aspectos se ramificam tanto que acabo vendo isso em todo lugar.

Por exemplo, o que está acontecendo com a Amazônia: 20% da floresta já se foi, e se forem contadas as áreas degradadas — que ainda são floresta mas já não têm condições de sustentar as condições do bioma — o percentual é muito maior. Caso continuemos destruindo e descarregando CO2 na atmosfera, haveria um aumento de temperatura de 6ºC no Norte, ou seja, a vida ali se torna inviável. Isso sem nem mencionar a consequente redução da biodiversidade, das chuvas e do sequestro de carbono.

O modo como nossas vidas dependem das florestas é inegável, apesar de isso não estar sendo levado a sério: a destruição segue inabalável. Mas há ainda aspectos menos óbvios de como nossa existência se entrelaça com as florestas e toda a vida.

Um pequeno exemplo: podemos apreciar cores devido à relação das árvores com outros seres vivos que, no passado longínquo, ganharam uma vantagem evolutiva por rapidamente conseguirem distinguir frutos coloridos entre a folhagem verde. E as árvores também foram evoluindo em direção a cores mais quentes nos frutos, para melhor disseminarem suas sementes. São esses olhos que herdamos.

Ao apreciarmos um pôr do sol incandescente, o azul do firmamento ou mesmo apenas um filme (colorido), essa história está aí oculta, entre milhões de outras. Boa parte de nossos próprios genes são os mesmos que os das plantas. Quando indígenas chamam árvores de seus parentes, o "povo-em-pé", não é metáfora. Compartilhamos, por exemplo, 44% de nosso DNA com a bananeira (além de 84% com camundongos e 52% com moscas de fruta). Não saímos por aí botando fogo na casa de nossos parentes, certo? Se tivéssemos olhos para enxergar, não faríamos isso.

Recentemente republiquei um meme com uma frase atribuída ao cientista canadense Rubert Reeves: "O ser humano é a espécie mais insana. Cultua um deus invisível e destrói a natureza visível, sem perceber que essa natureza que ele destrói é o deus que reverencia."

Reverenciar uma divindade invisível não é exatamente o problema. Mas sim, não ver que as qualidades de totalidade e esplendor, entre outras, atribuídas a esse deus, se expressam com toda força na natureza, no ambiente, em plantas e animais (incluindo humanos).

Já foram observados até fenômenos considerados como "altruísmo vegetal". Há alguns anos foi descoberta a "wood-wide-web", ou a internet das árvores, que é a rede que elas usam para trocar informações e nutrientes, mesmo entre espécies diferentes, já que a saúde de todos é essencial para a manutenção do microambiente local, como um bosque ou porção de floresta. Nesse tipo de convivência simbiótica, foi observado como uma conífera norte-americana, o abeto-de-douglas, quando sente que está prestes a morrer, solta todos seus nutrientes na rede subterrânea de micélio, doando tudo para as outras árvores. Apesar de nos considerarmos tão avançados, em aspectos como esse, ficamos bem para trás.

Mas a ligação íntima com toda a rede da vida não se restringe aos nossos corpos, interliga também a mente. Pode parecer conversa psicodélica de abraçador de árvore, mas há fundamentos filosóficos e científicos cada vez mais sólidos que estabelecem a continuidade entre a mente e a própria vida.

Talvez não seja por acaso que, nesta altura do campeonato, em que professamos maestria tecnológica na subjugação da natureza, ainda não haja definições consensuais sobre o que é a vida, e o que é a consciência. Isso talvez seja bom para mantermos os pés no chão e reconhecermos quão pouco de fato sabemos sobre nós mesmos e a realidade. Talvez em vez de dominar a natureza, possamos respeitar e aprender com ela.

Pode ser que vida e consciência sejam ambas difíceis de definir e compreender porque no final são a mesma coisa. Entre as tentativas de definir o que é vida, chama a atenção a teoria de autopoiese dos cientistas chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana, pelo seu caráter mais holístico. Segundo eles, o que define um ser vivo é sua capacidade de manter-se vivo (ou criar-se a si mesmo, que é o significado de "autopoiese"), em um sistema aberto em que depende do ambiente, mantendo certa individualidade.

Para obter aquilo que precisa do ambiente, cada ser vivo (por exemplo, uma bactéria) necessariamente precisa "sentir" o mundo ao redor. Esse sentir é o nível mais básico de mente ou senciência — que não implica a consciência subjetiva de um eu, do modo como certos animais sociais como nós possuímos — mas é a base da cognição.

Nessa definição, a mente é simultânea e inseparável da vida, em todas as suas formas. Uma consequência que enxergo nessa visão é que, da mesma maneira como eu não possuo a vida, mas sou uma forma de vida, integrada numa rede maior, também não possuo uma mente, mas tenho uma "forma de mente", já que mente e vida se igualam. Pode parecer abstrato, mas essa abertura para uma realidade maior costuma ser vivenciada diretamente, por exemplo, em experiências de pico ou de "espanto", como mencionei em artigos anteriores. São o tipo de experiência ou insight que mudam a maneira como vemos a nós mesmos e o mundo, podendo ajudar bastante em nossa mobilização contra o colapso natural. Afinal, de que adianta ficar falando sobre o "divino" ou ideais nobres, se não conseguimos enxergar o que está bem diante de nós? Enxergando diretamente, então agir se torna um imperativo.

"Autodestruição" não é só metáfora ou analogia. Realmente temos uma identidade maior, que pode ser experienciada diretamente com nossos corpos e mentes, e estamos destruindo-a com uma ignomínia abjeta. É por isso que dói tanto olhar de frente o atual colapso do meio ambiente. Essa experiência de angústia é o outro lado da epifania natural. Não há como ter uma sem a outra. Mas reconhecer a presença da doença é o primeiro passo para poder curá-la.