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Mente Natural

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O espanto como poder de transformação

Mulher stand-up paddle embarcando em um lago de montanha intocada - Getty Images
Mulher stand-up paddle embarcando em um lago de montanha intocada Imagem: Getty Images

Emersom Karma Konchog

13/06/2021 06h00

Pesquisas recentes sobre bem-estar apontam uma emoção-chave para o florescimento humano: a sensação de espanto ou reverência diante de algo vasto, que nos desafia. Não é necessariamente espiritual, apesar de soar como. Diante das emergências climática e ecológica em que nos encontramos, esse sentimento pode ser muito útil como a faísca inicial da transformação.

Apesar da palavra "espanto" capturar razoavelmente essa experiência, não há um termo em português preciso sobre isso, como a palavra inglesa "awe" — definida como "uma emoção que combina medo, veneração e maravilhamento, inspirada tanto por autoridade quanto pelo sagrado ou sublime" (Merriam-Webster).

Assim como em inglês, em português, espanto não necessariamente se refere a algo positivo. Alguém pode sentir isso diante da violência massiva de um governo fascista, por exemplo, podendo sofrer consequências bem desagradáveis. Mas pesquisas recentes apontaram diversos benefícios do espanto em relação à fenômenos mais positivos.

Entre eles:

  • catalisar outras emoções positivas como contentamento e gratidão;
  • aumento da criatividade, curiosidade e pensamento crítico;
  • aumento da humildade e generosidade;
  • redução da depressão e distúrbios cardíacos e autoimunes.

Em um aspecto menos extraordinário, esse espanto pode ser sentido, por exemplo, ao contemplar uma paisagem à partir de um ponto elevado. Já uma multiplicação máxima dessa mesma experiência foi descrita por astronautas que observaram a Terra à partir do espaço: muitos deles sentiram uma reverência tão grande quanto à altura em que se encontravam — e alguns até dizem que isso transformou suas vidas para sempre.

Felizmente, não precisamos transcender a estratosfera para sentir essa reverência espantosa.

Espanto natural

Apesar de não termos uma palavra precisa para essa emoção, obviamente, ela faz parte de nossas vidas. Por exemplo, é por causa dela que muitos de nós apreciamos a experiência de estar em meio à natureza.

Esse espanto nos faz sentir humildes, pois diante de algo vasto como a interconexão da vida — tanto no nível macro das matas, atmosfera e oceanos, quanto sumindo em dimensões microscópicas que incluem nossas próprias células — a bolha de nossos egos inflados é perfurada. Pode não ser algo muito confortável, pois isso expõe nossa ilusão de modo ligeiramente brutal. Ao mesmo tempo, isso é mais do que compensado pelo maravilhamento em relação à algo muito mais sublime do que nós mesmos.

A própria vida tem um começo bastante humilde: uma única célula começou a se dividir e replicar. Agora mesmo, posso escrever isto, e vocês podem ler, por causa desse processo, que nunca foi interrompido por 3,5 bilhões de anos. Então a coisa se torna vasta, e mesmo tendo um caráter por vezes insondável — apesar de termos explicações razoáveis, o que de fato é a vida? — podemos apreciar, nos maravilhar e reverenciar, já que estamos no meio de tudo isso.

Desconexão

Curiosamente, o fato de que sentimos a necessidade de nos conectar com a natureza revela a ausência ou deficiência de nossa conexão. Susan Simard, a ecóloga que descobriu como as árvores conversam e se ajudam através da rede simbiótica subterrânea de fungos, comentou em entrevista para a Emergence Magazine:

"Os povos originários veem a si mesmos como sendo um com a natureza. Eles não têm nem mesmo uma palavra para "meio ambiente", já que são uma unidade. E eles veem as árvores, plantas e animais, o mundo natural, como pessoas iguais a eles. Então há o povo árvore, o povo planta. E há árvores mães e árvores avós, há a irmã cereja e a irmã cedro. E eles as tratam -- o seu ambiente -- com respeito, com reverência."

Já nós, continuando nosso sonho de superioridade e dominação, queremos resolver os atuais problemas ambientais com soluções do tipo créditos de carbono (que nada mais são do que dar permissão para grandes corporações continuarem poluindo, bastando pagar a tarifa), máquinas para sugar carbono ou então lançando partículas na atmosfera que talvez revertam o efeito-estufa (ou seja, contra a poluição, mais poluição). Ou então talvez seja melhor fugir logo daqui e colonizar Marte, iniciando assim, a fase cósmica de nosso projeto de destruição.

Pensamos em evolução em termos de novos dispositivos eletrônicos, como naquele filme de ficção científica "Oblivion", com Tom Cruise, recheado de eletrônicos com design "clean" branco — no final do filme, a monstruosa face de toda essa tecnologia é muito menos sofisticada do que as aparências.

Transformação

Paradoxalmente, esse nosso orgulho tecnocrático, esse psicótico sentimento de superioridade não apenas em relação à natureza, ao mesmo tempo que bloqueia a experiência da realidade natural interligada, é o que torna tão espantosas — e até aterrorizantes para alguns — as experiências de reconexão, pois esse espanto se baseia no contraste entre nossa grandeza imaginada e a vasta grandeza verdadeira. Essa experiência é menos dramática para quem não sofre tanto com desconexão.

É por isso que se diz que não é o mundo que precisa ser salvo: somos nós. E o cultivo de mais reverência em relação à natureza que nos permeia geralmente pode ser a faísca da transformação.

O escritor estadunidense Richard Powers, ganhou o prêmio Pullitzer de ficção em 2019 com o livro "Overstory", uma história sobre… Árvores. Ele comentou em uma entrevista sobre o espanto como fator de transformação:

Começa com essa ideia de que sua própria visão sobre o que é significativo mudou. Através do espanto, do medo, da humildade, você se tornou alguém que vê a necessidade de retornar à comunidade, e todas as outras ações virão daí. Esse primeiro passo inicial — de dizer: "O mundo é um lugar vivo, e não sou o dono e mestre dele" — é uma pré-condição necessária e suficiente para tudo o que virá depois.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL