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Mente Natural

Obstáculos para uma cultura regenerativa

Jovens protestam contra as mudanças climáticas - Google
Jovens protestam contra as mudanças climáticas Imagem: Google

Emersom Karma Konchog

23/01/2021 04h00

Vários de nossos principais problemas como sociedade surgem de ideias, principalmente as supremacistas como: 'meu objetivo é mais importante', 'meu grupo vale mais que o seu', 'podemos explorar outras espécies' etc. A destruição e degeneração que vemos por toda parte não são resultado de meros enganos ou má índole, são também consequências desse tipo de mentalidade. No entanto, como essas ideias são fabricações culturais, elas podem e devem ser neutralizadas, se quisermos não apenas lidar com os sintomas mais urgentes de nossas sociedades agonizantes, mas também cortar na raiz.

Em artigo anterior, escrevi sobre um aspecto dessa mentalidade destrutiva: a ideia de que seria melhor estimular o egoísmo. Vou tratar aqui de uma outra visão predominante: a de que somos de certo modo superiores e separados da natureza. Basicamente, isso se refere àquela atitude de ver a natureza como uma fonte de recursos a serem explorados, que se baseia em um premissa um tanto quanto irracional: 'podemos nos apropriar da natureza (ela está lá e nós, aqui)', como se não fôssemos parte inerente e dependente dela.

Se uma visão mais razoável predominasse — a de que destruir a natureza é o mesmo que nos autodestruirmos — haveria verdadeira urgência para tentarmos reverter os atuais desastres socioambientais que temos causado: emergência climática e extinção em massa de espécies, crises que ameaçam a própria continuidade de nossa civilização.

Um exemplo recente de como uma visão de mundo destrutiva resulta em danos para nossa sociedades: em uma notícia sobre uma grande petroleira, a empresa deixa claro que não pretende se adequar às metas mundiais da ONU de redução de emissões de gases do aquecimento, e nem vai investir em energia renovável, pois isso é algo que não se alinha com suas expectativas de lucro. Analistas econômicos comentam que essa postura se deve à busca de 'vantagens competitivas'. E, mesmo diante da catástrofe ambiental que estamos vivendo, o meio de comunicação nem questiona essa posição.

Se valores ligados à preocupação com o ambiente, que é inseparável de nossa capacidade de viver e prosperar, fossem considerados mais importantes do que desempenho econômico, uma atitude assim jamais seria aceita como normal.

É por isso que uma nova maneira de pensar o mundo e de como se inserir nele é um ponto-chave de diversos movimentos por mudanças. Esse é o aspecto interno do que costuma ser chamado de cultura regenerativa. Trata-se do reconhecimento de que nossa cultura predominante é essencialmente (auto)destrutiva e, portanto, precisamos de ideias que não apenas interrompam esse ciclo, mas que tragam regeneração e reparação.

Na verdade, a essência desses 'novos' modos de pensar é bem antiga. Por exemplo, integram o núcleo das culturas de povos nativos ou da espiritualidade oriental, em que seres humanos fazem parte da teia da vida, sem privilégios especiais autoconcedidos.

Assim, transformar as ideias destrutivas mais profundas que motivam nossas atitudes acaba sendo crucial; do contrário, apesar de ficarmos implementando medidas paliativas aqui e ali, se ainda houver lá no fundo uma ideia supremacista, por exemplo, é uma questão de tempo para que crises que refletem essa ideologia surjam novamente.

Egoísmo irracional

De onde vem o conceito de que somos donos da natureza? Basicamente vem daquela ideia de que seríamos superiores. Como isso não se baseia na ciência ou bom senso, haveria aí ligações religiosas? Parece que sim, e no mau sentido. Há um culto egoísta de si mesmo — ou de um eu coletivo como uma corporação, ou facção política. A autossatisfação se torna o centro do universo, quase como um deus que precisa vencer contra todo o resto.

Apesar de as corporações e governos que se beneficiam do enriquecimento destrutivo serem vistos como uma consequência de inovações tecnológicas e científicas, a ideologia por trás disso soa mais como um culto fundamentalista.

Vem daí também o impulso por enriquecimento com base na exploração alheia. E isso retroalimenta essa visão de mundo: para justificar a exploração predatória (que inclui humanos), é preciso sempre reforçar a ideia da competição desregrada, da subjugação alheia, do 'vence o mais forte'.

Supremacismo

Como então podemos disseminar uma cultura mais humana e compassiva, para neutralizar esse tipo de ideologia?

Para lidar com o supremacismo/egoísmo em geral, imagino que um bom ponto de partida é a educação. Por exemplo, há diversos projetos no exterior sobre se ensinar nas escolas compaixão e outros valores humanos como solidariedade, como sendo qualidades humanas inerentes e fundamentais, e não como virtudes espirituais ou especiais. Também sempre podemos apoiar e disseminar os movimentos que incentivam o cultivo de tais valores.

Já em relação à visão da suposta superioridade do homem em relação à natureza, não vejo muito o que fazer além de reconhecermos coletivamente a falácia dessa ideia (e consequentemente de suas consequências, como o extrativismo e o desenvolvimentismo, que beneficiam uns poucos, prejudicando milhões) e promover e apoiar valores regenerativos.

Por exemplo, uma ideia que vem de povos indígenas norte-americanos é ampliarmos nossa noção de tempo de vida, incluindo as consequências para as gerações futuras nas decisões coletivas que afetam o ambiente. Em vez de políticas públicas levarem em conta apenas o curto prazo, deveríamos considerar também como as pessoas e seres do futuro serão afetados. Isso, por exemplo, já está sendo praticado em uma iniciativa chamada "Future Design", no Japão: em assembleias cidadãs para se discutir políticas públicas, há um grupo que representa os cidadãos do futuro e seus interesses, tendo o mesmo poder deliberativo das outras pessoas. Em movimentos ambientais como Greve pelo Clima e Rebelião ou Extinção (Extinction Rebellion), a preocupação sobre que tipo de mundo estamos entregando para as gerações futuras também é um pilar central.

Mas não é preciso ir muito longe para encontrarmos ideias regenerativas para nossa sociedade: faz parte do currículo do ensino médio o estudo da 'ecologia', o ramo da biologia sobre a relação entre seres vivos e seu meio ambiente. Nenhum ser existe de modo independente de seu ecossistema, tudo ali é interdependente, cada um afeta a todos. Nesse cenário, não seria absurdo uma espécie se levantar como suprema e explorar e exterminar as demais? Não seria um tipo de suicídio?

Isso demonstra o quanto os valores de nossas sociedades se separaram dos conhecimentos mais elementares, do bom senso.

Pós-capitalismo

Outro obstáculo para a disseminação de culturas regenerativas é encarar a crise ambiental como uma bandeira político-partidária: criticar o modelo extrativista e desenvolvimentista muitas vezes é visto como 'coisa da esquerda'. Ambientalistas seriam comunistas disfarçados. Dá a impressão que voltamos à época da guerra fria.

Hoje, entre ativistas ambientais, se fala muito em pós-capitalismo. 'Capitalismo' aí não significa o oposto de comunismo — definição bem obsoleta. Significa a ideologia do crescimento econômico como o bem supremo, mais importante até do que o mundo natural. Mas, como diz o slogan, "não há economia num planeta morto".

Caso reconheçamos coletivamente o fracasso dessa ideia de enriquecimento a qualquer custo, qual sistema econômico poderia substituí-la? É a isso que 'pós-capitalismo' se refere. E não há consenso entre as respostas, mas comunismo não é uma delas. Mesmo em nível conceitual, o sistema que substituiria o 'crescimentismo' ainda está em construção. Há ideias sólidas como 'decrescimento', economia donut (que já está sendo testada em Amsterdã) e 'buen vivir', e elas não tem ligação nem com partidos de esquerda.

Mitigar o atual colapso ambiental não depende de orientação política. Em países onde este debate está mais avançado, como na Europa, mesmo políticos conservadores já compreenderam isso.

Dissonância

Há também um obstáculo mais cultural para que abracemos culturas regenerativas. Em geral, a maioria das pessoas concorda: já que somos parte da natureza, não tem sentido destruí-la. No entanto, ao mesmo tempo, consideram as pessoas que tentam disseminar essa mensagem como 'meio hippies', new age ou então ingênuas, como se estivessem querendo voltar para 'o mundo do bom selvagem'.

Esse é outro exemplo da qualidade esquizofrênica de nossas sociedades: ao mesmo tempo que reconhecemos os ideais de bom senso, os rejeitamos.

Esse próprio desdém com os 'hippies' segue a mesma lógica: a maioria das pessoas concorda com ideais de 'paz e amor', mas ao mesmo tempo consideram quem procura viver de acordo com isso como ingênuos. É como se houvesse um moral autêntica, que seria ótimo se as pessoas seguissem, mas que na prática não funciona.

Esse 'na prática' basicamente se refere ao mundo onde precisamos competir uns com os outros e vencer. Assim, o que sentimos que precisamos fazer na sociedade vai contra aquilo que, no fundo, acreditamos.

Esse conflito moral é outra evidência da falência das ideias dominantes em nossas sociedades, como as ideologias supremacistas ou de competição predatória. Mas apesar de isso ficar claro quando examinamos com atenção, também parece óbvio que os valores humanos, que no fundo reconhecemos como sendo os ideais, estão perdendo para os ideais inumanos com que somos bombardeados e manipulados.

Por exemplo, não é coincidência que os povos indígenas — justamente as comunidades que vivem na prática as culturas regenerativas de que tanto precisamos, atuando inclusive como guardiões do mundo natural — costumam ter suas terras pilhadas e exploradas, sendo assim exterminados e relegados à extinção.