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Mara Gama

REPORTAGEM

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Rock in Rio: Catadores dão nova vida ao lixo gerado durante o festival

Rock in Rio 2022: público deixa montes de lixo no Parque Olímpico - Lucas Pasin
Rock in Rio 2022: público deixa montes de lixo no Parque Olímpico Imagem: Lucas Pasin

Colunista do UOL

22/09/2022 06h00

O Rock in Rio está durando mais de sete dias para uma equipe especial. Eles não foram à Cidade do Rock nem se divertiram como as 700 mil pessoas que assistiram aos 300 shows. Sua jornada começou sempre nas manhãs seguintes, depois do fim de cada dia de festa. E eles ainda estão se revezando em três turnos de trabalho para passar a lupa nos resíduos gerados pelo festival no centro de triagem de Bangu, no Rio. O levantamento deve terminar na sexta (30).

São 80 catadores que separam o que foi coletado por tipo de material, produto e marca. Parte do que é separado tem venda já acertada para as empresas fabricantes dos produtos que foram consumidos pelo público no local do evento. Ao todo, foram cerca de 230 toneladas.

Segundo os responsáveis pelo festival, foram contabilizados mais de 872 mil itens divididos entre copos, garrafas plásticas e embalagens de produtos até as 22h do domingo, dia 11, último dia do evento.

Após a separação, a Nissin comprará embalagens de Cup Noodles - foram 58 mil vendidos no evento. A Novelis vai arrematar o alumínio recuperado (só de latinhas de Red Bull, foram vendidas 590 mil). A Coca-Cola se comprometeu a comprar as 156 mil garrafas PET consumidas.

Uma parceria da Coca-Cola, da Heineken e da Natura tem compromisso de recuperar os copos plásticos, que foram usados para água, chopp e refrigerante, e que serão adquiridos pela indústria química Braskem. Segundo o festival, foram produzidos 4,5 milhões de copos. A fração recuperada desse material será usada na fabricação de embalagens de desodorantes para a Natura. As marcas Doritos e KitKat também apoiam a iniciativa. As embalagens de salgadinhos e chocolates das marcas, apesar de recicláveis, têm índices baixíssimos de reciclagem.

Três cooperativas se uniram para dar conta da separação detalhada: Reciclamais, Coopama e Cooper Ecológica.

O acordo criado para o evento garante aos catadores de recicláveis diárias fixas de R$ 100 e a compra dos materiais com valores 20% acima dos que são praticados pelo mercado, segundo a Ancat, Associação Nacional dos Catadores. A renda dos materiais será rateada entre as cooperativas.

Além disso, as cooperativas também vão dividir os valores dos créditos de logística reversa obtidos através do programa Recicla + pela plataforma Reciclar pelo Brasil, coordenada pela Ancat.

Segundo a associação, cerca de 30% das mais de 230 toneladas de resíduos do evento são rejeitos e não podem ser reciclados - restos de alimentos, embalagens muito sujas, papel molhado. Esse material será destinado ao aterro sanitário do Rio de Janeiro.

"É um trabalho minucioso que exige muito dos catadores", conta Roberto Rocha, presidente da Ancat. "A novidade é a separação por marcas, solicitada pelas empresas", diz.

A separação de resíduos por fabricante é feita de forma sistemática por ONGs em suas coletas em praias, parques e reservas de proteção ambiental. É a chamada auditoria de marca, que visa a apontar ao público as fatias de responsabilidade das empresas pela poluição ambiental, sobretudo a causada pelas embalagens. O movimento Break Free From Plastic já fez uma dessas auditorias com cooperativas no ano passado em São Paulo.

High Tech e Low Tech

O sistema bolado para gerenciar os resíduos do Rock in Rio mistura high-tech e low-tech.

As cargas de resíduos nos caminhões da Comlurb foram rastreadas do local do show até o centro de triagem e os materiais também serão rastreados na saída das cooperativas e na entrada nas indústrias recicladoras, para garantir a confiabilidade das informações sobre peso, material, procedência e unicidade de dados.

As empresas precisam saber que fração do total colocado no mercado voltou aos seus cuidados ou de recicladores parceiros em forma de resíduo, para seus compromissos de logística reversa. O controle do fluxo dos materiais foi feito por blockchain, registro público e inalterável, implementado pela startup Reutiliza Já, segundo Humberto Bahia, fundador e CEO da empresa.

Essa é a parte high-tech.

A parte low-tech fica nas mãos e nos olhos dos catadores, fazendo pente fino meticuloso no que vem previamente separado e também separando o que o público misturou por falta de educação ambiental, apesar de iniciativas pró descarte correto no evento. Copos de chopp Heineken e Coca-Cola, por exemplo, continham mensagens de incentivo ao descarte adequado. A Braskem tinha quatro pontos de coleta. Os materiais plásticos podiam ser trocados por brindes.

O formato adotado no Rock in Rio tem qualidades, segundo a Ancat. "Para nós é proveitoso por dois motivos", diz Roberto. "Por conta do trabalho de separação mais fino, a venda está saindo por preço maior que o do mercado. A latinha, por exemplo, que está a R$ 7,5/ R$ 8,0 o kg, vai sair por R$ 12", afirma Roberto. "Eu já fiz Carnaval, muitos tipos de eventos. Nunca com compromisso de compra pelas marcas. Esse é um outro grande diferencial. Sou catador há 25 anos e é a primeira vez que vejo um esquema assim", conta.

O processo pode ser melhorado, segundo o presidente da Ancat. "É possível implantar novas tecnologias para as triagens serem mais rápidas", aponta. "Se os catadores estivessem fazendo a coleta dentro do evento, teríamos maior agilidade na separação dos materiais já na origem. Estou acostumado com catador dentro. A galera faz acontecer", defende. "Uma pequena estação de triagem dentro do evento facilitaria todos os processos", diz.

"Para nós foi uma grande experiência. Mesmo não tendo a gente dentro do evento. Esse trabalho de separação mostra uma grande especialização dos catadores e prova que eles podem fazer isso", diz Roberto.

Agora é aguardar que o Rock in Rio e as empresas divulguem os resultados do levantamento e o índice de reaproveitamento real dos materiais na indústria. O processo tecnológico permite conhecer os dados. Divulgar todos os detalhes ao público são outros quinhentos. Muitas vezes as empresas selecionam apenas números fechados indicando o quanto foi economizado de recursos, água e energia com a ação, os chamados KPIs (indicadores-chave de desempenho) socioambientais, por serem mais vistosos.

O Rock in Rio se anuncia como o primeiro evento da América Latina e um dos primeiros do mundo a ser certificado pela ISO 20121 (Sistema de Gestão de Eventos Sustentáveis), garante que envia para reciclagem 80% de todos os resíduos gerados durante sua realização e que tem como meta 2030 desviar todos os seus resíduos de aterro. O festival divulgou que o resíduo orgânico dos serviços de alimentação para artistas e fornecedores da fase de montagem da edição 2022 foi destinado à compostagem.

ESG é pop

As ações sustentáveis geram retorno de imagem para as empresas envolvidas. Um estudo da empresa de comunicação CDN apontou quais marcas obtiveram mídia espontânea (sem pagamento de veiculação publicitária) por terem patrocinado o Rock in Rio ou desenvolvido alguma promoção no evento e quantificou esse retorno.

Para fazer a análise, a CDN verificou reportagens e menções ao festival em 583 reportagens de 23 veículos brasileiros entre os dias 1 e 12 de setembro. Segundo o estudo, 71% eram relacionadas às estratégias de marketing das marcas e, em segundo lugar, com 15,6% das menções, estavam as iniciativas de ESG dessas mesmas marcas. Bingo.

Entre as dez marcas que mais conquistaram mídia (em termos de valor) durante o festival no índice criado pela CDN, estão cinco das empresas envolvidas na iniciativa de reciclagem do Rock in Rio: KitKat - R$ 8,9 milhões, Natura - R$ 7,6 milhões, Heineken - R$ 6,63 milhões, Coca-Cola - R$ 6,12 milhões e Doritos - R$ 5,8 milhões.