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A retomada da memória Kariri pelo projeto Museu-Vivo
O Museu-Vivo das Marrecas é uma iniciativa que busca revitalizar a memória de um povo da nação Kariri, da comunidade do Marreco (fala-se Mareco também), que está localizada em Quitaíus, Lavras da Mangabeira, no estado do Ceará.
A idealizadora, Bárbara Matias, doutoranda em Artes da Cena (UFMG), que trabalha com escrita, audiovisual, foto-performance, compartilhou as intenções do projeto, atualmente em campanha com financiamento coletivo no site do Kickante, como "Construção do Museu-Vivo das Marrecas Kariri". O Museu-Vivo, desenhado pela comunidade, busca ser um espaço de "exposição de artesanatos, práticas de rezo, raizeiros, parteiras e acolhimento das artes", bem como minimizar a ausência de políticas públicas no que diz respeito às atividades culturais e educativas.
Bárbara reitera a importância do Museu como um lugar para reagrupar simbolicamente as famílias Kariri que foram separadas no fim da década de 1990, pela construção do açude do Rosário que alagou a região, impactando diretamente e dispersando as famílias que viviam em sítios em torno do rio. Como seis famílias decidiram ficar e reconstruir seus sítios, de frente para o açude, o espaço escolhido para o museu, de certa forma, simboliza a resistência em deixar o seu território, reforçando a intrínseca relação da comunidade com a terra das marrecas.
Histórias de origem: as marrecas e o Batí
A comunidade do Marreco (ou Maréco), se chama assim porque em sua comovisão, no passado eram todos marrecas. Dessa forma, diz Bárbara: "O Museu das Marrecas é um selo de retomada de um povo que foi dado como extinto, por isso, é um sonho contra-colonial, não esquecemos por nenhum instante que andamos em bandos porque somos antes de qualquer coisa, Marrecas".
Entrevistei outros jovens Kariri para saber dos impactos da retomada da identidade indígena frente à brasileira. Sinalizar a pluralidade de identidades existentes no território nacional significa debatermos cada vez mais sobre a inclusão da diversidade étnico-racial na educação.
Rebeca Menezes, que difunde a literatura indígena Paraíba no Instagram; e, Mikael Correia (povo Kariú-Kariri), do Crato, da Serra do Juá, um dos participantes do Retomada Kariri Ceará, contaram um pouco sobre a memória do povo e a importância de ações para o reconhecimento da identidade indígena. Povos da nação Kariri guardam na memória o ritual Batí, que era praticado também pelos povos da nação Tarairiú.
O Batí é muito presente no sertão do nordeste. É o período das celebrações juninas que marcam a mudança de estação, o final do inverno, simbolizando assim o surgimento de um novo ciclo (ano novo). Caracteriza-se pelo plantio do milho, batata, amendoim, mandioca, culminando na colheita em junho, momento que os povos da nação Kariri se reúnem em círculo e dançam o Toré ao redor da fogueira, celebrando a presença das plêiades, ou Sete-estrelas, morada de Badzé, Warakidzã e Poditã.
Mikael nos descreve poeticamente a relação do território Cariri com os deuses e o ritual:
"O território chamado Cariri, sul do Siará, é o território sagrado de Badzé - o Deus do fumo e criador do mundo. Badzé é o grande pai, Poditã, filho de Badzé, é a divindade da caça, da guerra, e Warakidzã é a divindade do sonho, da noite. Eles habitam as Sete-estrelas, conhecidas como constelação de Órion. Badzé é que envia Poditã para a Terra no início de todo Batí. Foi ele que ensinou nosso povo a reconhecer os frutos, a caçar animais, a fazer farinha de mandioca, a preparar utensílios de uso cotidiano, a dançar, a cantar e a fazer os rituais de pajelanças. Warakidzã é quem conduz a noite, os sonhos, os presságios".
O ritual do Batí foi apropriado culturalmente pelo catolicismo, apagando a autoria dos povos indígenas e negligenciando suas práticas e sentidos. Hartmut Lutz (1990), autor alemão, ao estudar a apropriação cultural dos povos indígenas pelo Estado-nação norte-americano ilustra as violências que a atitude colonial comete ao negar origem e autoria, ao se manter "ahistórica na medida que exclui de seus discursos o contexto histórico, especialmente, a história das relações entre os indígenas com os não indígenas".
Rodney William enfatiza, sobre essa questão, que "deslegitimar as lutas ou descontextualizar os fatos, negando a propriedade e alterando os sentidos, torna o ato da apropriação um dispositivo-chave na implementação de políticas de morte", e arremata, "O extermínio de um povo pressupõe a morte de sua cultura".
O evento Véspera de São João suplanta o povo Kariri e outros povos indígenas da equação cultural e espiritual. Silencia que a dança em círculo em volta da fogueira é o ritual do Toré, renomeando a seu modo como quadrilha; define o milho, amendoim, batata e mandioca, como alimento típico, quando para os povos originários são sagrados, referindo-se ao Batí. A celebração do período do plantio, a dança ritualística em círculo, pertencem originalmente aos povos indígenas, sendo, portanto, como diz o historiador Casé Tupinambá, um patrimônio imaterial indígena. Reafirmar essa memória é, nesse sentido, um ato político para reaver a história e a identidade Kariri.
O Museu-Vivo das Marrecas, assim, é um projeto que sonha com a autonomia simbólica e física, e encontra-se também no Instagram. Como espaço de educação, procura retomar e assegurar a existência do povo, ao mesmo tempo que diminuir os índices de analfabetismo ao implementar livros de autoria indígena, e, ainda, imprimir nas presentes e futuras gerações, o orgulho da caboclagem Kariri, em suma, o orgulho do pertencimento.
Como ajudar?
Para apoiar o projeto Museu-Vivo das Marrecas: Construção do Museu-Vivo das Marrecas Kariri | Kickante
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