Julián Fuks

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Opinião

Para que serve a tristeza? Para que olhar e dar palavras à tragédia?

Mario Quintana está coberto de água até o peito. Talvez alguém lhe conte que a cidade onde nasceu foi devastada pela enchente, que a casa de sua infância ficou inteira submersa. Do banco em que está, é possível que veja o hotel onde morou tantos anos, o prédio que hoje o homenageia. Hoje não: hoje o prédio é o mais úmido dos desertos, é um lago de águas turvas e silentes. A livraria da esquina também se calou, inundou-se de mudez, e chora o livreiro. Quintana é apenas uma estátua que conversa com outra estátua na praça da Alfândega, conversa com um Drummond de pernas rijas e marrons mergulhadas no tormento. Mas eu os acompanho no silêncio e me pergunto, ainda inerte: para que serve, afinal, a tristeza?

Os poetas Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana, em escultura de Xico Stockinger, em Porto Alegre
Os poetas Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana, em escultura de Xico Stockinger, em Porto Alegre Imagem: Cris Gutkoski/UOL

Ali na praça vazia ainda ecoam os berros da humana turba, arrebatada e inquieta, os berros que romperam a tranquilidade dos poetas. Ali ainda ouvem, os que não dispõem de ouvidos, as vozes distantes das quatrocentas cidades fustigadas pela chuva, tantas agora imersas. É possível que lhes chegue o choro da mãe que perdeu sua filha bem quando um barco as salvava, o desespero mudo da mulher vendo a menina sumir em águas austeras, águas de sua própria casa. É possível que os alcance o latido de mil cães abandonados, e o relincho de um único cavalo, pássaro equino empoleirado há dias num telhado de zinco. Drummond comenta com Quintana, um tanto assustado: "Vi moças gritando numa tempestade. O que elas diziam o vento largava, logo devolvia. Pálido escutava, não compreendia."

Quintana se lembra também de sua tempestade, da grande enchente do passado que o presente supera, o presente é mesmo um exagerado. "Quando a água alcançar as mais altas janelas", ele escreveu daquela vez, mas o verso seguinte de pouco lhe vale, "eu pintarei rosas de fogo em nossas faces amarelas". Para que rosas de fogo numa enchente, por que escreveu esse verso? A imagem agora lhe diz pouco, mais preciso é o que gravou em outra estrofe: "Espíritos de deuses, sobre as águas pairamos". Mas Drummond discorda: "Estátuas sábias, adeus", escreveu pensando no medo, "somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos." O caso é que Drummond sofre: "Vejo-te no escuro, cidade enigmática. Chamas com urgência, estou paralisado. De ti para mim, apelos, de mim para ti, silêncio."

Mas para que serve, afinal, a tristeza, essa que nos chega com a terrível notícia, a paisagem desolada, a dor no rosto alheio? E para que serve a palavra no descalabro, para que serve um poema sobre os tristes? Quase nunca as perguntas de fato pedem respostas, mas desta vez Quintana a tem, dispõe do verso mais certeiro. Já escreveu que um poema serve para abrir uma janela, para que o leitor respire, profundamente. E então o verso: "Quem faz um poema salva um afogado".

Drummond está agora calado, circunspeto, insondável, suspeito que ainda pense na desgraça, que tenha se alienado da conversa. Eu não me convenço plenamente, não sei para que serve um poema, não acho que possa salvar um afogado, ainda que a ideia se mostre afortunada e bela. Por ora me limito a perguntar para que serve a tristeza, essa coisa entranhada que periga nos afogar por dentro, em águas da nossa própria casa. Penso que às vezes não enxergamos nada, os olhos não nos bastam, precisamos ficar tristes para ver. Talvez a tristeza seja um olho oculto dentro do peito. Talvez sirva para ver de perto, no escuro, e nunca mais esquecer.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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