O fim da intimidade: sobre o risco de adotar para si os juízos dos outros
Ele não existe, não poderia existir, ou este texto perderia o sentido. É um sujeito qualquer, de idade indefinida, um sujeito bom, que no entanto percebe em si alguns desejos inadequados, ou que às vezes se vê acometido por sentimentos pouco dignos. Quais desejos e sentimentos não sei, o leitor que projete aqui os que bem entenda. Importa pouco se ele age ou não em função desses ímpetos. O caso é que a simples existência de tais apelos, ainda que controlados e sutis, já é suficiente para que ele se sinta aflito. Vê-se aos olhos dos outros, aos olhos que não o veem, e sofre ainda assim: o que achariam dele se soubessem tudo o que se passa em sua mente? Como seria capaz de explicar sua incoerência, sua fraqueza?
Esse sujeito existe apenas para os outros, já não sabe existir para si mesmo. Pode não gozar de nenhuma notoriedade, pode não ser uma figura pública, mas pensa, sente e age como se fosse. Como se tudo em sua vida estivesse submetido ao escrutínio coletivo, como se não lhe restasse nada de privado, nenhuma intimidade possível. A moralidade dos outros encravou-se nele profundamente: tudo em si precisa ser correto, defensável, bem aceito por seus espectadores inexistentes. Por isso ele quase já não age, vê-se paralisado em muitos momentos. Por isso pensa tão pouco, tende a perseguir seus próprios pensamentos. Por isso já não quer sentir, e encara os próprios desejos como indesejáveis.
Não sei se esse sujeito é ninguém, ou se é muitos e muitas de uma vez. Talvez seu tormento venha do fato de ter se tornado, como tantos de nós, um narrador de si mesmo. Vê os outros contando-se o tempo todo, explorando suas experiências banais nas redes, confessando-se em programas televisivos, escrevendo livros em que o eu é mais literal do que em outras épocas. O sujeito em questão pode até não falar de si, pode se privar da exposição. Ainda assim aderiu a esse modo atual de estar no mundo e obedece aos desmandos de uma voz qualquer, um narrador que lhe exige retidão e honradez, ou no máximo um defeito menor que sirva de alívio cômico à sua existência. Ele não se narra, mas o tempo inteiro imagina como se sairia se fosse narrado.
Talvez não haja nenhum mal em narrar a si mesmo, talvez esse não seja bem o problema. Freud tinha apenas dezoito anos quando estabeleceu com um amigo um acordo estranho: a cada semana trocariam cartas extensas em que contariam tudo o que viveram, o que fizeram e não fizeram, além de todos os pensamentos e observações e um esboço de seus sentimentos. Não é extrapolado cogitar que ali estivesse o germe do que viria a ser a psicanálise, e que Freud estivesse começando o processo autoanalítico que mais tarde julgaria fundamental. Assim conhecia a si mesmo com profundidade, e essa seria a condição imprescindível para que ouvisse bem os outros, e fosse deduzindo as infinitas minúcias da psique humana.
Mas há uma diferença essencial entre a disposição de Freud e a que agora se vê. Freud tratava de se expor sem censuras, não temia o julgamento de seu amigo e nem o seu próprio julgamento: "Não tenho medo de me mostrar ridículo ante seus olhos", ele escreve, "porque você já sabe até que ponto todos somos loucos, estúpidos e idiotas". No pensamento moral de nosso tempo, já não há espaço para concebermos que todos sejamos loucos, estúpidos e idiotas. Queremos ser em tudo pessoas corretas, queremos não incorrer em nenhuma falta, e por isso a cada momento nos censuramos. Cerceamos o que somos até entre os próximos, até na solidão dos pensamentos.
Volto ao sujeito hipotético que concebi para este texto. A existência pública desse anônimo o afasta de si, impede que ele se conecte com seus próprios anseios, suas fantasias. Ele está agora quase desprovido de intimidade: a presunção do público o invadiu e ele já não consegue encarar seus fantasmas, não consegue estar em paz com suas imperfeiçoes, com suas feições inconfessáveis. Pensar-se passou a ser um hábito terrível. Ele é louco, estúpido e idiota como todos os demais, mas nem no abrigo de si mesmo aceita ser algo assim, por medo de que os outros o saibam.
Em alguns aspectos me pareço a esse homem que inventei, em outros tantos nada tenho a ver com ele. O caso é que já cheguei a achar que toda a minha existência deveria ser narrável com máxima sinceridade, e que para isso me caberia levar uma vida absolutamente sincera. Agora compreendi que essa ambição é impossível e sobretudo indesejável, e que para continuar a me narrar posso me valer dos recursos da ficção, de seu sistema de deslocamentos e alterações. A todos nós, ficcionistas ou não, estão dadas essas possibilidades, que preservam em nós espaços pessoais, secretos, invioláveis. Agora sei que o pior de mim e o melhor de mim não escrevo, não confesso, não falo, guardo para mim como matéria viva da minha intimidade.
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