O último personagem simples: o homem convertido em sua caricatura
Ora um sujeito brutal, ignorante, empenhado na defesa violenta de seus privilégios. Ora alguém desnorteado, a oscilar entre a confusão e a paralisia, incapaz de lidar com as transformações de seu tempo. Eis o homem, eis a indubitável crise da masculinidade. Ninguém de mente sã negará que se trata de uma crise efetiva, sobretudo aquela que acomete o homem branco, hétero, cis, essa figura que por milênios se dedicou a perseguir os outros e subjugá-los aos seus domínios. Mas às vezes me vejo a lamentar a pobreza de descrições que isso cria, a falta de complexidade com que se trata a categoria homem, o excesso de certezas, um certo esquematismo. A impossibilidade que surge em ficções e discursos públicos de ir além de uma caricatura. Talvez estejamos diante do último personagem simples.
Não é coincidência que isso aconteça numa época em que começamos a nos livrar de outros estereótipos, em que, nos meios mais pensantes, já provoca grande desconforto um retrato caricato das mulheres, dos negros, dos gays, das pessoas trans, e aqui a enumeração exige um largo etcétera. Durante milênios esses perfis foram amplamente distorcidos, satirizados, vilipendiados pelas palavras, durante milênios se viram também silenciados, e é natural que encontrem agora sua hora da desforra. Não há nada de injusto nisso, e nem deveria suscitar revolta. Mas pode provocar estranhamento, sim, num tempo de pensamento complexo e tentativa de compreensão das diversidades, a redução do outro a um retrato sumário e frágil.
Esse sujeito que um dia se quis o representante maior de todos os demais, esse sujeito tão equivocado que acreditava viver os dramas universais, que pensava ser o expoente dos ímpetos e das quimeras de toda a humanidade, esse sujeito agora se vê relegado à sua ignorância e seu patetismo. A queda dos universais permitiu a toda uma cultura enxergar o que lhe escapava, ver que as identidades são sempre mais indecifráveis, entender o risco e a violência que há em nomear o outro e querê-lo condizente com tais palavras inexatas. A contrapartida tem sido, porém, uma leitura por vezes banal do algoz dessa história, sobre o qual recaem agora todos os traços vilanescos que alguém imaginaria esgotados.
Insisto: é certo que o homem o merece, e não apenas por seu passado. O homem tem sido infinitas vezes um personagem lamentável. Como reação às mudanças aceleradas de uma civilização, vemos no presente um recrudescimento da mais estúpida masculinidade, obscurantista e retrógrada. Em figuras que reivindicam com constância um torpe ideal de homem, em Trump, Bolsonaro, Milei e seus genéricos que se arvoram viris e imbrocháveis, podemos ver exatamente o contrário, a máxima expressão da falência masculina. E se a crise não fosse tão grave, não teriam tanto apelo esses personagens execráveis.
Ainda assim acho que isso não justifica um rebaixamento do discurso aos termos mais simplórios. "Um homem não é mais que um homem", diz um verso certeiro de Jorge Drexler, e como todo verso certeiro por vezes vale também o seu contrário: um homem é mais que um homem. Toda figura humana, isso levamos milênios para entender, é mais do que aquilo que lhe atribuímos num olhar distante, apressado, em palavras-síntese. Há sempre na natureza humana algo de indevassável, e não pode
senão falhar e falsear qualquer ficção, qualquer pensamento que não contemple esse limite. Personagens simples demais são precários e desinteressantes: descrever alguém assim acaba sendo um traço de precariedade também daquele que emprega a palavra.
Por longo tempo ponderei se devia escrever este texto, por medo de me ver mal interpretado, de julgarem que aqui defendo um sujeito indefensável, o mais desprezível de nosso tempo. Acabei me permitindo escrever não porque me cansei de contemplar esses retratos estereotípicos, com os quais confesso que já vou me acostumando. Acabei me permitindo escrever porque me caiu nas mãos uma escrita oposta a essa que aqui critico, que me deu a esperança de podermos transcender esses esquemas e retornar, quem sabe, à complexidade.
Trata-se do livro de uma mulher feminista, decidida a inverter uma histórica sentença. Por tempo demais, diz Ligia Gonçalves Diniz, os homens voltaram algum olhar inquisitivo para as mulheres sem a devida contrapartida, num curso de pensamentos que levou Jacques Lacan a sugerir que a mulher não existe, uma ideia controversa que envolve a perplexidade ante o desconhecido. Diniz é uma crítica literária, e se dispõe agora a ler os homens sem generalizações nem conclusões definitivas. O homem é agora seu Outro, como antes a mulher foi o Outro do homem, no dizer de Simone de Beauvoir. Desta vez é o homem o sujeito cuja realidade escapa, que nunca se entrega a um conhecimento absoluto. Em outras palavras, e aí está o título do livro: "O homem não existe".
Talvez haja nessa sentença, afinal, uma dupla utopia. A ideia de um mundo em que o homem não exista, e que assim não perpetue suas tantas opressões e violências. A ideia de um mundo em que o homem não exista, em que um homem qualquer se veja enfim livre para ser mais que um homem.
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