Julián Fuks

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Opinião

Uma menina mergulha no mar -reflexões parciais sobre a paternidade

Deixara o corpo à deriva no mar, deixara-se levar por águas e desejos até que seus pés já não tocassem o chão. Agora não tinha mais nenhum controle sobre a situação, nenhum controle sobre seu corpo. Agora se via lançada de um lado a outro pelas ondas, que a empurravam, a arrastavam, a faziam dar giros e cambalhotas, cobriam sua boca e lhe roubavam as palavras, lhe roubavam o ar. Sentia-se pequena e desamparada e arrependida de suas vontades, quando um homem se aproximou com sua prancha, capaz de salvá-la. Por um instante ele sorriu ante sua aflição, e o sorriso prenunciava uma verdade inesperada: você não precisa que eu te salve, ele disse, aproveita o fundo do mar.

Com a agonia que já se fez costumeira, os olhos bem abertos, os punhos cerrados, Tulipa surgiu aos pés da nossa cama no meio da madrugada e já quis narrar esse sonho. Chamou-o de pesadelo, como costuma chamar a maioria de seus sonhos, talvez por intuir o que alguma vez afirmou Borges, que o pesadelo é sobretudo a sensação de pesadelo, a sensação do horror e não as suas circunstâncias. Desta vez, ainda que impacientes e tomados por nossas próprias oníricas sombras, desta vez acho que despertamos animados com seu relato emocionante de final ligeiramente cômico, ligeiramente sábio.

Quando nasceu Tulipa há seis anos, quando nasceu Penélope há quase quatro, lembro ter sentido uma estranha urgência por vê-las grandes, aos catorze, aos dezesseis, aos dezoito. Acho que temia não saber conversar com crianças menores, não me adaptar a uma linguagem de gracejos banais e murmúrios afetuosos. Ansiava por um tempo de diálogos profundos, o tempo em que trocaríamos revelações e perplexidades. Não sabia que, desde aquele primeiro momento, despontavam seres complexos e intermináveis, tão capazes de enganos cômicos quanto de súbitas verdades. Não conhecia a vastidão daquelas águas, as profundezas em que eu submergia de imediato.

Lembro do tempo em que eu ensaiava uma paternidade teórica através dos livros, passava horas em leituras sobre o insólito comportamento de crianças hipotéticas, horas que agora me faltam porque crianças muito reais as consomem. A paternidade teórica talvez se resuma em princípios de extrema simplicidade: basta ali tornar-se presença atenta, existir como pessoa razoável, despender com fartura a paciência, a alegria, o carinho que tenhamos. A paternidade real traz desafios maiores, exige de nós essas virtudes monásticas enquanto a criança grita por algum detalhe incontornável, uma pulseira estilhaçada, um doce esfarelado, uma roupa que não cabe mais — exige que não nos façamos ríspidos mesmo ante mesquinhas contrariedades.

Nunca se chega a ser o pai abstrato, o pai quimérico que os livros constroem, só o que se pode ser é pai de crianças específicas, únicas, singulares. A mim calhou tornar-me pai de uma menina doce, sensível, gentil em cada um de seus atos, que no entanto se deixa visitar à noite por pesadelos constantes, por angústias que a intrigam e a atordoam. Calhou também tornar-me pai de outra menina, guerreira, teimosa como poucas, em constante atrito com o mundo, e ávida por se reconciliar com ele no instante seguinte a cada confronto. Uma menina que dispõe, todavia, de um humor criativo e ágil, e dorme um sono plácido a cada noite, e revela a absoluta injustiça das palavras que aqui digo, dos juízos redutores.

Ainda não cheguei a entender bem o que o sonho de Tulipa falava sobre ela, mas não tenho dificuldade em torná-lo sonho meu e depreender o que fala sobre mim. A paternidade pode ser esse mar revolto que nos empurra e nos arrasta, e nos afasta de qualquer chão, e nos rouba o ar e nos rouba as palavras. Pode fazer com que nos sintamos pequenos e desamparados e arrependidos do que alguma vez desejamos. Mas por sossego nenhum no mundo, por calmaria nenhuma, eu gostaria de voltar às águas rasas em que chapinhava antes desse mergulho intenso e espantoso. Quero ainda muito aproveitar desse fundo.

Esta noite, Tulipa assomou de novo à nossa cama e se pôr a narrar um novo sonho. Contou que viu um caminhão aberto e não resistiu a subir e assumir o controle. Os pedais estavam ao alcance de suas pernas, mas o caminhão não tinha volante e ela saiu dirigindo desgovernada, batendo em todo carro que aparecia de chofre. Viu que o caminhoneiro deixara também um celular, e decidiu então ligar à polícia, que logo apareceu, e a salvou, e a prendeu. Passei a noite lá presa, longe de vocês, disse ela, e vocês morreram de tanta tristeza.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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