Sobre escrever bem: uma declaração contra o império da simplicidade
Ninguém me dirá como escrever bem, nenhum tirano ditará quais palavras me cabem dizer, se meus verbos se insinuam antiquados, se meus adjetivos são invasivos e solenes, se meus advérbios alongam frases desnecessariamente, se minhas metáforas estão mortas como um rato esmagado por um trem, se minha sintaxe é sinuosa e austera, tediosa e grosseira, incapaz de clareza, oposta ao prazer. No julgamento severo do nosso tempo, esse período que acabo de cometer está todo errado, cheio de impropriedades, e deveria ser navalhado em cada um de seus excessos, ou então suprimido por inteiro — como este também.
Há algumas décadas essa tem sido a suma orientação a quem deseja escrever. Que jamais deixe sobrar uma palavra indiferente, que evite todo traço de rebuscamento, que não procure nenhum tipo evidente de literariedade, que cada frase soe clara e simples e nua e casta e infértil, despojada de todo adereço.
Que tudo seja expresso com o mínimo de ruído, que o leitor compreenda de imediato cada mensagem, indubitavelmente, que as sentenças sejam sempre diretas e limpas, concisas e coerentes — e que se escolha apenas um desses adjetivos para dizer o que se deseja. No império da simplicidade, eliminar palavras é o gesto literário por excelência. E assim vamos formando uma geração de escritores infensos ao dicionário, contrários à linguagem; e uma geração de leitores que só buscam histórias fortes narradas limpidamente.
Ao escritor cabe sobretudo o medo. Deve temer os termos longos e abstratos, cada um passível de se tornar um peso morto sobre a página, a assombrar os leitores também assustados. Deve temer as palavras incomuns, as estranhas, as grandiloquentes, as antigas, maculadas pela poeira dos séculos. Deve temer o olhar dos críticos, encarados como fiscais da clareza, e fugir de seu juízo terminante de pretensão excessiva, de vaidade ou pedantismo. Ao escritor cabe a dieta da língua: ingerir apenas palavras magras e nutritivas, que não suscitem qualquer risco de resultarem indigestas aos estômagos sensíveis.
Assim recomendou a Economist, num artigo que se propunha a ditar o que devem ler aqueles que querem escrever melhor. O que deve ler um bom escritor, segundo os economistas?
Uma sequência de manuais de estilo que defendem sempre a mesma doutrina, a começar pelo clássico de George Orwell que parece ter aberto a tradição de ataque à prosa obscura ou labiríntica, a tradição de defesa da razão, algo que só se encontraria nas palavras cotidianas reunidas na ordem costumeira. Que a literatura siga as diretrizes de eficácia que regem o pensamento econômico, que se faça objetiva e vendável, com custos mínimos: nisso culminam tantos princípios.
Para dar riqueza a essa visão um tanto empobrecida, evocam-se sempre alguns grandes nomes da boa literatura concisa. Entre anglófonos, Ernest Hemingway é incensado como modelo maior da economia das letras, em sua diatribe contra o uso do dicionário, sua defesa da pontuação comportada e sua alardeada antipatia por adjetivos.
Entre brasileiros, Graciliano Ramos se torna a referência máxima, na obsessão por um estilo seco assemelhado às vidas que ele retrata, e em seu célebre conselho de que seria preciso cortar e cortar e cortar palavras até que um texto se veja perfeito, e então cortar mais algumas antes de julgá-lo findo.
E então abrimos um clássico de Hemingway e nos deparamos com o improvável. Eis a primeira frase de "Por quem os sinos dobram", esse título que há de incomodar os editores implacáveis por sua preposição e seu pronome salientes:
"No acamado de folhas secas do pinhal estirou-se o moço de bruços, com o queixo sobre os braços, a ouvir o rumor do vento nas frondes."
Alguém acusará a tradução de Monteiro Lobato, mas ainda assim a interrogação salta aos lábios: não será em nenhuma medida dispensável esse vento que atinge os pinheiros nas frondes? Não há aí a construção de uma literariedade que, em teoria, segundo seus admiradores, Hemingway seria um mestre em evitar?
E então abrimos um clássico de Graciliano e a dúvida volta a nos assaltar. Leiamos uma frase do primeiro parágrafo de "Vidas secas", livro que até o último minuto se chamaria "O mundo coberto de penas", um título bem mais alargado e poético do que se costuma esperar do autor. "A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala." A frase tem sua secura, é verdade, é árida como o cenário que descreve, mas ninguém poderá negar que Graciliano constrói seu efeito pelas palavras que escolhe e sustenta, não pelas que rejeita. Dois adjetivos em sequência, os galhos pelados, a catinga rala, cada um deles suprimível sem grandes perdas, e no entanto a força da frase está na confiança no que eles têm a dizer.
Bons autores confiam na linguagem, investem sobre ela com todo ímpeto, mesmo quando desejam abatê-la — tal como fizeram Joyce e Woolf e Beckett, tal como continuam a fazer os que trilham as sendas que eles abriram. Mesmo Orwell sabia que era preciso contrariar o dogmatismo de suas leis: "quebre qualquer uma dessas regras antes de dizer alguma coisa totalmente bárbara". Essa ressalva é convocada por vezes, ao menos pelos mais complexos propagadores da simplicidade. Só é pena que tenha ficado mais esquecida que as regras anteriores, e que os mais obtusos não entendam sua sutileza e sua força, seu poder de minar todo o discurso que a precedeu.
É a defesa da complexidade, da multiplicidade, da máxima riqueza de sentidos o que aqui tento empreender, talvez de forma um tanto quixotesca. A literatura viceja no choque interno entre as palavras, atinge seu efeito com muito mais potência ali onde desponta a ambiguidade, onde alguma obscuridade relampeja. Num mundo já tão comprometido com a eficácia, não será em submissão às normas da clareza que ela cumprirá sua vocação, não será se fazendo obediente e ordeira. Espero não estar dizendo alguma coisa totalmente bárbara, agora que descumpri cada norma do bem escrever. Espero que a literatura nunca aceite ser menos que livre e indomável, viva e surpreendente — como um vento uivante nas frondes da catinga rala.
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