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Após sequenciar vírus, brasileira conta como é lutar na ONU contra pandemia

A pesquisadora Jaqueline Goes - Reprodução/Instagram/@drajaquelinegoes
A pesquisadora Jaqueline Goes Imagem: Reprodução/Instagram/@drajaquelinegoes

Luiza Souto

De Universa

10/12/2020 04h00

Doutora em Patologia Humana e Experimental pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), em associação com a Fiocruz, a biomédica baiana Jaqueline Goes de Jesus, 30, foi responsável pelo sequenciamento genético do novo coronavírus 48 horas depois dos primeiros casos de covid-19 na América Latina, ao lado de Esther Sabino. Apesar do feito, é modesta: "As pessoas acham que é algo mirabolante, mas é uma técnica de preparo. O que faz o sequenciamento mesmo é o computador, não somos nós".

Pesquisadora bolsista da Fapesp no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, Jaqueline está há um mês trabalhando como voluntária numa equipe de pesquisadores reunidos pela ONU (Organização das Nações Unidas), batizada de #TeamHalo (auréola em português), e que produz conteúdos sobre o coronavírus a fim de combater a desinformação.

"Tem gente que não vai tomar a vacina porque acha que o RNA vai mudar o material genético", diz ela sobre a molécula responsável pela síntese de proteínas das células do corpo. "Quem inventou uma coisa dessa primeiro não entende nada de biologia, porque não entende o mecanismo natural para o RNA ser inserido no genoma, e quem reproduz entende menos ainda porque acredita", critica.

Black Eyed Peas + TikTok na difusão científica

Nascida em Salvador, Jaqueline trabalha pelo menos 15 horas e já estava acordada antes das 8h, quando conversou com Universa por telefone. Mas encontra tempo para produzir vídeos explicando como faz o sequenciamento genético, ao som de The Black Eyed Peas ("I Gotta Feeling") ou como começa o dia dela no Instituto de Medicina Tropical da USP. E publica tudo no TikTok, onde tem mais de 14 mil seguidores, e no Instagram, com 154 mil fãs.

Mas sua participação na equipe quase não foi possível, ela revela. Com mais de 22 artigos publicados em renomadas revistas científicas internacionais, Jaqueline diz que, quando convidada pela primeira vez para integrar o time, que tem profissionais de vários países do mundo e de respeitadas instituições, foi instada a falar sobre a produção da vacina. Não era o ramo dela.

"Expliquei que não trabalhava diretamente com isso, mas na cadeia de conhecimento. Os genomas são utilizados pelas pessoas que produzem a vacina para entender as mutações. E senti que a pessoa ficou decepcionada, porque ela queria muito que eu fizesse parte da equipe", explica ela, que agora trabalha com outros três brasileiros no time: Natalia Pasternak, Gustavo Cabral de Miranda e Rômulo Neris.

Jaqueline - Divulgação/IMT - Divulgação/IMT
Imagem: Divulgação/IMT

Mas tempos depois, foi procurada novamente pela instituição, que ampliou o raio de ação da equipe. O convite foi feito em 5 de novembro. "Aí, pronto. Foi a maior festa porque eu já queria um projeto parecido."

Jaqueline, que virou personagem na Turma da Mônica, de Maurício de Sousa, e os demais integrantes têm total liberdade de produção dos conteúdos, com todo suporte da plataforma TikTok, ela conta. Seu objetivo agora é fazer um maior número de pessoas acreditar na ciência.

"Existe todo um critério que valida o que está sendo realizado ali dentro do laboratório. E mais ainda: existe outro processo de revisão que acontece de forma criteriosa para que um artigo científico seja publicado. As pessoas não têm nem noção disso."

"Acham que a gente faz balbúrdia"

Morando hoje em São Paulo, Jaqueline fez um estágio de doutoramento sanduíche na Universidade de Birmingham, no Reino Unido, graças ao Ciência sem Fronteiras. O programa foi criado em 2011 para financiar alunos fora do país, mas acabou oficialmente em 2017, por falta de verba.

Ela, que é mestre em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa pela Fiocruz e ganhava bolsa de R$ 1.500 para se dedicar exclusivamente ao mestrado, critica a falta de apoio à pesquisa no país.

"Acham que a gente faz balbúrdia na faculdade. A gente precisa ter a população do nosso lado, e ela precisa compreender que investir em pesquisa vai fazer o país melhorar", defende. A crítica remete a uma fala, em 2019, do então ministro da Educação Abraham Weintraub, que ameaçou cortar recursos de universidades.

"O que se passa para a população é que a gente fica mamando na teta do governo, quando na realidade a gente praticamente paga para trabalhar. Durante mestrado e doutorado, fui completamente 'paitrocinada' para conseguir sobreviver. Quando vim para Ribeirão Preto, meu pai pagava meu aluguel e mandava dinheiro porque minha bolsa não dava. Quando voltei para Salvador, fui morar com meus pais. Você não consegue se sustentar, que dirá ter uma família", diz ela, filha de uma pedagoga e um engenheiro civil.

Como ter um currículo invejável aos 30

Jaqueline também lida com desconfianças quanto a alguém de sua idade ter um extenso currículo. Mas tenta olhar para o lado bom disso.

Em 2017, participou do projeto Zibra (Zika in Brazil Real Time Analisys), grupo de estudos com cientistas de outros países e que percorreu todo o Nordeste para fazer diagnósticos e sequenciamento do zika vírus, que provoca a microcefalia. Ela chamou atenção dos ingleses que coordenaram a equipe e foi para a Inglaterra estudar mais seis meses com eles.

"O supervisor na Inglaterra me chamava de 'super fast' (super rápida). Para eles, foi tranquilo ter mulheres jovens na equipe mostrando que tinham competência. Talvez eles não tivessem a expectativa de que a gente podia dar conta do recado tão bem. Tive uma certa surpresa, mas não pelo lado negativo", diz.

Existe o estereótipo de que o cientista é o homem branco, mais velho, idoso ou de meia-idade, que passou por muita coisa e agora, sim, está autorizado a receber reconhecimento. Eu sou jovem, mas tenho 11 anos de pesquisa científica. Sempre falam: 'nossa, como você é jovem'. Não se fala isso para homem, só pra mulher

As dificuldades de pesquisa no Brasil

A falta de verba não prejudica somente a vida pessoal de um pesquisador no Brasil, conforme indica Jaqueline. Ela atenta, por exemplo, para a falta de um fluxo de importação de produtos que permitam que as pesquisas avançam rapidamente.

"Hoje, se for comprar reagente de fora do país, leva de 40 até 60 dias para chegar. Enquanto isso, o cara lá na Alemanha já fez o trabalho e publicou o artigo. Como você quer ser um país com tecnologia de ponta se não oferece o básico? Se o pesquisador não for muito organizado, fica dois meses sem trabalhar porque não tem reagente."

Como um cientista sustenta uma criança?

Dadas as dificuldades financeiras, Jaqueline quase desistiu da carreira. Chegou a pensar em parar os estudos algumas vezes. Ela conta que pensava: "Não tenho uma casa, não posso sustentar uma família". Isso passa muito pelo imaginário de uma mulher durante o doutorado, sobre como sustentar e educar uma criança, porque não é só uma questão financeira, mas tem a dedicação."

Nordestina e preta, ela diz que manifestações de preconceito não eram claras no meio acadêmico. Nas palavras dela, nos corredores das universidades por onde passou, por ser um ambiente de pessoas mais estudiosas e polidas, seria um tiro no pé demonstrar preconceito. Pondera, no entanto, que o baixo número de mulheres como ela nos espaços de poder revela a face mais cruel da repulsa ao seu gênero e cor.

"Nos níveis mais altos de cargos de liderança, são todos homens. E quem são esses homens? São os que tiveram o incentivo da família ao longo da formação acadêmica e puderam abdicar de emprego para pagar conta em casa, e conseguem chegar nessa fase mais elevada de hierarquia acadêmica. É muito raro você ver uma pessoa que saiu da pobreza ou uma mulher ocupar um cargo de liderança."