Aos 6, ele perdeu pernas em acidente e trocou a cadeira de rodas pelo skate

Felipe Nunes, 23, perdeu as duas pernas quando tinha seis anos em um acidente de trem. E foi um skate usado, dado de presente por uma vizinha, que fez sua vida mudar completamente.

Ele substituiu a cadeira de roda pela prancha com rodinhas, ganhou agilidade, rapidez e uma diversão: a possibilidade de fazer manobras na pista perto de sua casa com os amigos. Anos mais tarde, aquilo que começou como presente se tornou profissão.

Atualmente, ele acumula conquistas: tem medalhas do X-Games, já foi considerado o skatista do ano em 2021 pela CBSK (Confederação Brasileira de Skate) e subiu ao lugar mais alto do pódio no STU Nacional. A VivaBem, ele conta sua história:

Felipe Nunes é skatista profissional
Felipe Nunes é skatista profissional Imagem: Shigeophoto

"Sofri um acidente na linha do trem que me fez perder as duas pernas. Estava acompanhado de alguns amigos e a nossa ideia era subir no trem, mas não deu certo. Acabei caindo e a composição passou por cima das minhas pernas.

Não sei dizer com certeza, mas acredito que fiquei cerca de uns 30 minutos ali, jogado no chão, antes da primeira ambulância chegar. Lembro que minha irmã e meus tios me socorreram e ficaram me dando apoio até os médicos aparecerem.

O acidente aconteceu no final de julho e só saí do hospital depois do meu aniversário —que é 3 de setembro. Fiquei bastante tempo internado e não foi possível salvar minhas pernas por causa dos ferimentos.

O acidente aconteceu quando eu tinha seis anos, mas me lembro de tudo como se fosse ontem. Minha mãe me colocou na terapia e me levava quase todos os dias da semana, com receio de como a experiência afetaria minha vida.

Em uma das sessões, a psicóloga me perguntou se eu lembrava o que tinha acontecido. E eu, tranquilamente enquanto brincava no consultório, contei tudo para ela, sem problema algum. Quando terminei, a médica estava chorando.

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Depois disso, ela avisou a minha mãe que eu não precisava de análise. Tinha contado todo o acidente dando risada, sem me abalar. Para ela, não estava sofrendo de nenhum trauma por tudo o que tinha passado. Recebi alta da terapia.

E não tenho nenhum trauma mesmo. Não gosto de ficar falando, mas depois do acidente eu fui novamente à linha do trem. Não para provar nada pra ninguém, mas para me testar. Tinha essa curiosidade, queria saber onde foi. No lugar, parecia que estava vivendo tudo pela segunda vez. E mesmo assim não me abalei.

Um novo dia a dia

Quando tive alta do hospital, minha mãe decidiu que se mudaria de bairro e foi aí que o skate entrou na minha vida. O filho de uma das minhas vizinhas andava de skate e quando ele não quis mais usar o longboard ela perguntou se eu queria. Na inocência, aceitei e me interessei na hora. Não sabia o que fazer com ele, então deixei minha cadeira de lado e passei a usá-lo para me locomover.

O skate me deu mais independência do que a cadeira. Para pegar ônibus ou para ir para os lugares, era muito mais fácil. Foi nesse momento que percebi que não tinha mais volta: minha relação com o skate só crescia.

Trocar a cadeira pelo skate foi a melhor decisão que tomei na minha vida. Ele era mais do que minha forma de locomoção, era também o meu lazer. E tudo aconteceu de forma muito natural. Eu e alguns amigos descobrimos uma pista perto de onde morávamos. Eu os via tentando manobras e, com o passar do tempo, fiquei curioso e decidi que também ia me aventurar.

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Minhas tentativas foram dando certo. Criei um amor pela adrenalina que era impossível de explicar. Ia para a pista cedinho e só voltava para casa tarde da noite. Vivia para o skate o dia todo.

Vida de atleta

Andar de skate ajudou a melhorar muito minha autoestima e me fez acreditar mais em mim mesmo. Não só enquanto fazia manobras, mas também no meu processo de amadurecimento.

Aos poucos, fui conhecendo como era o mundo do skate e como funcionavam, por exemplo, os campeonatos. Comecei a participar —e ganhar— alguns deles. Até viajava para competir.

Felipe Nunes não carrega nenhum trauma de seu acidente
Felipe Nunes não carrega nenhum trauma de seu acidente Imagem: Divulgação

Conforme fui ganhando, surgiu a minha vontade de ir competir nos Estados Unidos, onde a cena do skate é muito forte. E como não existiam competições para pessoas com deficiência —nem aqui e nem lá— eu participava dos campeonatos tradicionais mesmo.

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Sempre participei de igual para igual. Se não conseguisse, me esforçava mais para estar no mesmo nível dos outros atletas. Hoje existem, sim, mais campeonatos para pessoas com deficiência. Estamos conseguindo movimentar a cena do skate e chegando lá.

Costumo dizer que tenho o melhor trabalho de todos. Além de me divertir, fico fazendo manobras com os amigos. Tenho o sonho de um dia escrever um livro contando a minha história. Quem sabe um filme para eternizar? Meu objetivo aqui na Terra é mostrar para as pessoas que elas podem fazer o que quiserem, independente das suas dificuldades."

Traumas não são para todos

Pode até ser impressionante, mas não é incomum pessoas não sofrerem com traumas em situações extremas, como a que Felipe enfrentou.

"Isso é possível tanto em crianças quanto em adultos. Mas nos casos em que acidentes acontecem de forma precoce, a pessoa se acostuma mais facilmente com as limitações que foram impostas", diz o psiquiatra José Waldo Saraiva Câmara Filho, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Câmara Filho explica que o aparelho cognitivo das crianças não está totalmente maduro, por isso há a possibilidade de não lembrar direito do acontecimento que poderia ser traumático, evitando assim, os traumas.

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Mas isso não quer dizer que elas sempre sofram menos. Apesar de não terem a memória visual do que podem ter sofrido, elas têm a memória emocional. "E por conta desse estresse, o cérebro pode se adaptar desde cedo a ter reações mais imediatas e permanentes a sensação de ameaça, com menos capacidade de relaxar", diz Câmara Filho. Gerando, assim, crianças inseguras e desconfiadas.

Segundo o especialista, a reação da pessoa pós-trauma depende muito da estrutura de sua personalidade. Se quem sofreu o acidente, por exemplo, era uma pessoa muito positiva, depois de um tempo ela deve voltar a ser da mesma maneira.

O contrário também acontece: se alguém muito negativo ganha na loteria a felicidade pode durar pouco, e logo a pessoa volta a sua rabugice.

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