Com AME, Sara reaprendeu a pintar deitada: 'A arte salvou a minha vida'

Diagnosticada com AME (atrofia muscular espinhal) tipo 2 no primeiro ano de vida, Sara Centeno Ribeiro, 19, sempre encontrou um refúgio na arte. Na infância, encostava a cadeira de rodas perto dos adultos para desenhar e colorir, enquanto as outras crianças corriam e pulavam por todos os lados.

Na adolescência, conseguiu participar mais dos encontros. Mas o cenário mudou drasticamente em 2017, quando ela fez uma cirurgia na coluna. O propósito era corrigir uma escoliose severa, mas o resultado foi a impossibilidade de voltar a se sentar sem sentir uma dor extrema.

Sara descobriu da pior forma que a pressão, antes na coluna, passou para a região do quadril e piorou um quadro de luxação —quando a articulação do quadril fica fora do lugar correto. Desde então, ela enxerga o mundo de lado, deitada em sua cama.

Por vezes pensou em desistir da própria vida, mas encontrou forças nos pincéis, no grafite e na massa de modelar. Enquanto não faz a sonhada cirurgia para corrigir a luxação, ela compartilha como a arte transformou sua vida e deu perspectivas de um futuro mais colorido. A VivaBem, ela conta sua história:

"Tinha pensamentos suicidas diariamente"

"A minha história com a arte começou quando eu era muito pequena. Tenho AME e uso cadeira de rodas desde os meus 3 anos. Enquanto as outras crianças estavam brincando de correr, de pular por aí, eu me refugiava na arte. Ficava na mesinha, junto com os adultos, rabiscando meus desenhos.

Sara com os pais no aniversário de 19 anos
Sara com os pais no aniversário de 19 anos Imagem: Arquivo pessoal

Conforme fui crescendo, as brincadeiras começaram a ficar de lado e, por consequência, os meus desenhos também. Como as crianças não ficavam mais brincando e correndo, já não precisava mais usar o meu refúgio.

Minha doença é degenerativa, mas tinha muita liberdade antes, conseguia ficar na cadeira de rodas o dia todo e estava sempre fazendo coisas, saindo. Porém, em 2017, precisei fazer uma cirurgia na coluna.

Continua após a publicidade

A recuperação da cirurgia foi muito difícil e, desde esse dia, estou acamada. Ter ficado presa na cama me abalou muito.

Quando digo que a arte salvou a minha vida, digo no sentido mais literal possível, porque, após a cirurgia, passei por um período muito complicado.

Não gosto de lembrar, mas tinha pensamentos suicidas diariamente. Não via mais sentido em continuar vivendo. Estava presa em uma cama, sem poder fazer nada, sem poder ver o sol direito.

Sara pintando deitada
Sara pintando deitada Imagem: Arquivo pessoal

Mas, um dia falei: 'Quer saber? Acho que vou tentar desenhar alguma coisa de novo'. E, a partir desse dia, ganhei um propósito de novo na minha vida.

Mas tive que me adaptar, porque desenhar e pintar deitada é bem complicado. Acabo colocando bastante peso no meu braço e no meu pulso para conseguir segurar o pincel, e, por ter hipermobilidade, as juntas são muito móveis, então, normalmente, acabo deslocando o pulso com o passar das horas. Mas vale a pena. Enfaixo o pulso, dou um jeito e, depois de uns dias, estou tranquila de novo.

Continua após a publicidade

"Arte é minha maneira de expressão"

Uma das pinturas de Sara
Uma das pinturas de Sara Imagem: Arquivo pessoal

Além de pintar, gosto muito de maquiagem, principalmente artística. Também gosto muito do mundo da moda, da costura, etc. Não estou conseguindo costurar agora, mas antes costurava na máquina e tudo. Quando era pequenininha, fazia roupinhas de boneca.

Basicamente, gosto de tudo que é artístico. A arte é minha maneira de expressão, é a liberdade que tenho de poder colocar um pedaço de mim em cada peça.

Como é tão difícil pintar, sinto que, realmente, tem um pedaço de mim em cada quadro. A arte é a minha maior paixão e força de vontade. É o motivo de eu estar viva hoje. É a minha esperança.

A minha grande inspiração no meio artístico é a Frida Kahlo. A relação dela com a arte é muito parecida com a minha, pelo fato de ela ter sofrido o acidente e ter passado um tempo pintando deitada. Ela sentiu muita dor e expressou isso por meio da pintura. É lindo e me identifico infinitamente. É por isso que pinto autorretratos, é minha maneira de mostrar para o mundo o que estou sentindo.

Continua após a publicidade
Tríptico sobre ansiedade pintado por Sara
Tríptico sobre ansiedade pintado por Sara Imagem: Arquivo pessoal
Imagem
Imagem: Arquivo pessoal

Pintei esse tríptico de quadros para representar a minha relação com a ansiedade. É um ciclo: vou para a superfície e está tudo bem, mas, de repente, me encontro lá no fundo, batalhando para fugir dos meus próprios pensamentos. É assim que me sinto com a ansiedade, porque parece que estou me afogando nos meus pensamentos.

Em 2019, quando fiz meu primeiro conjunto de quadros, tive certeza de que é o que quero fazer pelo resto da minha vida. Quero cursar Artes na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Não consegui fazer o Enem no ano passado, por estar acamada, mas estou esperando minha cadeira de rodas chegar para voltar à reabilitação.

Meu sonho é ter um ateliê profissional, um lugar específico para a minha arte, e fazer uma grande exposição. Esses tempos vi uma exposição de um brasileiro no [Museu do] Louvre e pensei: 'É isso, esse é o meu objetivo de vida'.

"A gente precisa de algo verdadeiramente nosso"

A arte fez um grandíssimo papel para eu continuar vivendo, para aceitar a doença, mas meu pai e minha mãe também foram fundamentais. Desde sempre, me apoiaram e enfatizaram que consigo fazer absolutamente tudo o que quiser.

Continua após a publicidade

Acho muito importante ter uma paixão que não seja outra pessoa, porque vejo muitas pessoas se agarrarem em outras e isso é problemático. A gente precisa de algo nosso, verdadeiramente nosso, para conseguir prosperar, principalmente pessoas com doenças degenerativas.

Quais os benefícios de ter um hobby?

A AME é uma doença genética rara e degenerativa. Ainda sem cura, exige um tratamento multiprofissional para conter a fraqueza muscular progressiva e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. A saúde mental é parte essencial do processo de bem-estar e não deve ser negligenciada.

É importante buscar ajuda de profissionais e priorizar práticas de autocuidado, como os hobbies. Fazer algo que gosta proporciona, por exemplo, uma sensação de pertencimento, aumenta a autoestima e exercita a criatividade.

Segundo um estudo publicado pela University College London em 2019, escolher um passatempo ainda pode reduzir em 30% o risco de ter depressão. Em pessoas que já convivem com a doença, o hobby ajuda na redução dos sintomas e pode aumentar consideravelmente as chances de recuperação.

Nos casos em que a pessoa está submetida à restrição de movimento e a dores crônicas, o hobby pode ser fundamental na redução do estresse e aumento da felicidade. Ele tira do paciente a sensação de aprisionamento.

Continua após a publicidade

A pintura, em específico, ajuda na capacidade motora fina e estimula o cérebro a criar novas conexões neurais. O exercício da criatividade, da coordenação, do senso estético e da apreciação do belo impulsionam a neuroplasticidade.

Conseguir canalizar os próprios sentimentos nas cores e nos traços e, por fim, concretizar essas emoções em uma pintura gera um sentimento de satisfação.

O hobby (seja ele qual for) é flexível —não existe uma forma correta ou uma periodicidade mínima. O importante é escolher algo agradável e lembrar, sempre, que é uma maneira de autocuidado.

Procure ajuda

Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

Fontes: Flávia Zuccolotto, psiquiatra do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (SP) e Mônica Mota Silveira, psicóloga hospitalar, arteterapeuta e preceptora da residência do HC-UFPE (Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco).

Deixe seu comentário

Só para assinantes