'Não é um luto normal': ela perdeu os filhos e a nora grávida em Brumadinho

"Eu estava em São Paulo, quando vi no celular uma notificação desses portais de notícia sobre o acidente. A barragem Córrego do Feijão, em Brumadinho, tinha se rompido.

Na hora, mandei mensagem para os meus filhos, mas eles não responderam. Falei com os amigos deles e ninguém conseguia contatá-los. Alguma coisa estava errada.

Nós começamos a ficar bem preocupados, já não dormimos. Não tínhamos nenhuma notícia, nada.

Meu filho Luiz e minha nora Fernanda, que estava grávida, vieram de passar as férias aqui no Brasil. Há um tempo eles moravam na Austrália. Luiz foi quem organizou a viagem para Inhotim.

Ele foi com o pai biológico e a madrasta, minha filha Camila foi no dia 24 e a Fernanda iria também, mas a mala dela extraviou e ela só conseguiu um voo no dia seguinte.

O Luiz e o pai foram buscá-la. Eles chegaram na pousada em que estavam minutos antes do rompimento da barragem.

Um primo do meu esposo, naquela ocasião, pertencia à Polícia Civil de Minas Gerais. Ele nos advertiu que, em Brumadinho, solicitavam que aqueles com parentes desaparecidos se dirigissem para lá.

Conseguimos chegar em Brumadinho no domingo. Na cidade, havia um espaço que recebia os familiares das vítimas, mas ninguém tinha notícia dos meus filhos, eles não apareciam na lista de desaparecidos.

Nos pediram para fazer uma série de cadastros e depois de tudo isso foi que tivemos a confirmação das mortes e que a pousada em que eles estavam foi a única que foi levada pela lama.

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O Luiz foi encontrado na terça-feira e Camila na quinta-feira junto com o pai biológico.

Quando eu fui reconhecer os meus filhos houve uma confusão porque meu nome na minha carteira de identidade estava diferente do meu nome no RG deles porque eu tinha me separado.

Eu tive que mostrar minha certidão de casamento com o pai deles para comprovar que era a mãe dos meus filhos.

A gente fez uma missa numa igreja que tinha lugar para 500 pessoas e ela estava lotada e ainda tinha muita gente do lado de fora.

Só que voltamos para Brumadinho para esperar o corpo da Fernanda ser encontrado, o que aconteceu em 16 de fevereiro, 22 dias depois do rompimento da barragem.

Ela foi cremada no dia 27 de fevereiro, no dia do meu aniversário."

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Quem foram Camila e Luiz

"A Camila tinha 33 anos quando morreu. Ela era muito inteligente, perspicaz, estava sempre antenada com os assuntos do momento e por isso que eu falo que ela veio para me mudar.

Ela era muito engajada, ia em várias manifestações. E eu confesso que achava às vezes até um pouco exagerado, mas depois eu percebi que ela estava certa.

A Camila foi uma criança muito interessante. Era tranquila, alegre, cheia de amigas e, na adolescência, gostava bastante de sair. Amava carnaval e dançar.

Meu marido é Engenheiro, da área de tecnologia e eles tinham muita afinidade com isso. Ela, advogada, se especializou em direito digital. A Camila estava assim super bem na profissão quando morreu.

Também tinha um trabalho voluntário e a gente só ficou sabendo depois que ela morreu que ela atendia mulheres que tinham sofrido violência doméstica.

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E nós estávamos sempre juntas, íamos bastante para os botecos. Ela dizia que éramos belas, desbocadas e do bar. Lógico que brigávamos às vezes que nem toda mãe e filha brigam, mas tínhamos um relacionamento muito gostoso.

A Camila e o irmão eram muito grudados. O Luiz era mais novo, tinha dois anos a menos que ela. Tinha 31 anos quando morreu. E ele era bem diferente da Camila, mais caseiro, mais focado. Mas me deu muito trabalho para estudar.

Ele era muito educado, um menino ótimo, mas de estudar não gostava muito, passava a aula desenhando e conversando.

Ele quase bombou o terceiro ano do colegial, isso só não aconteceu porque ele conseguiu entrar na faculdade de arquitetura. Ele entrou sem cursinho sem nada.

Quando isso aconteceu, eu não estava no Brasil. A Camila morava fora e fui visitá-la, eu liguei para ele um dia e ele falou: 'Tô fazendo minha matrícula na faculdade'.

Ele se formou e foi para Austrália, arrumou um trabalho legal, já estava lá há quase cinco anos, tinha sido nomeado diretor do escritório que trabalhava em dezembro, um mês antes de morrer.

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O Luiz era uma pessoa muito para frente, muito equilibrada. Ele sempre falava 'O que passou, passou, é passado. Foco no futuro e toca vida'.

Eu senti muito a falta dele quando ele foi para a Austrália, fiquei bem ruinzinha. Mas ao mesmo tempo eu estava muito feliz, até porque depois ele encontrou a Fernanda que era uma menina maravilhosa e ela ficou grávida. Eles estavam juntos há uns dois anos."

Quando o luto se torna legado

"Meus filhos não tinham reservado aquela pousada. Eles tinham reservado uma outra, mas o pai deles quis ficar lá e teve uma desistência naquele final de semana.

Aí quando esse tipo de coisa acontece, você não sabe o que pensar. Você briga com Deus, depois faz as pazes, você começa a questionar porque isso foi acontecer. A cabeça fica muito desorganizada.

A vida de todo mundo continua, mas a sua não, você não consegue viver de novo.

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Aquela Helena que tinha a Camila e o Luiz, que vibrava com a vida, morreu.

No início foi um inconformismo enorme, uma indignação imensa. E não foi um luto normal, porque foi um luto coletivo.

E também não é normal porque a gente sabia que essa tragédia podia ter sido evitada. A empresa sabia do perigo daquela barragem e não fez nada.

Teve Mariana antes de Brumadinho. Mariana foi a sirene de Brumadinho que ninguém escutou. Se tivesse sido ouvida, não teria acontecido o que aconteceu.

Hoje, a indignação é a mesma, mas a gente consegue transformar o luto em luta.

Os amigos e as amigas da Camila e do Luiz, estão sempre conosco. E lá no começo, depois de um mês da morte dos meus filhos, a gente se reuniu e nos propuseram a criar uma organização para falar sobre o que aconteceu.

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Ainda há muitas barragens com níveis de segurança muito baixos e que podem romper a qualquer momento.

O Instituto tem como objetivo a defesa dos direitos humanos em duas vertentes: Empoderamento dos grupos vulneráveis, especialmente mulheres por conta do legado que a Camila nos deixou, e a proteção do meio ambiente, os dois eram muito engajados com essa questão.

A Camila foi um exemplo para mim de engajamento nessas causas, eu aprendi muito com os meus filhos, muito. Nós estamos seguindo os passos deles, não tenho dúvida disso.

E ter o instituto com os amigos deles para nós é muito bom, eles têm um jeito muito gostoso de se relacionar conosco. Eles nos acolhem de uma maneira muito carinhosa, sempre muito amorosa. Tem sempre uma mensagem de alguém no celular, um convite para sair, para almoçar, para boteco. É muito gostoso conviver com eles.

E eu acho que é esse carinho, esse aconchego, esse acolhimento é o que nos faz ter força para continuar e de lutar mesmo por justiça.

Ninguém vai trazer meus filhos de volta, mas a gente vai continuar lutando por justiça.

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Eles não podem ter morrido em vão. Nós temos que seguir em frente."

O luto coletivo também é individual

A reportagem conversou com especialistas, psicólogos que estudam luto e todos disseram a mesma coisa: mesmo coletivo, como Helena Talibertidiz ter ser o luto pelo qual passa, a experiência do luto é individual. Sendo assim, não há fórmulas universais de lidar com ele.

"No caso de Brumadinho, a gente precisa lembrar que há uma leitura do que aconteceu, inclusive de familiares, de que não houve um desastre, mas sim um crime ambiental. Quando falamos em ação criminosa, falamos de intencionalidade ou, ao menos, responsabilidade, ou seja, o que aconteceu poderia ter sido evitado, o seu ente querido poderia estar aqui vivo, não ter falecido", diz Mônica Venâncio, psicóloga do ambulatório de luto da UFBA.
Esse é o sentimento, como foi posto no relato acima, de Helena Taliberti.
Familiares em situações como essas tendem a passar a vida reivindicando justiça. É uma forma, muitas vezes, de honrar a vida de quem faleceu.
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Mônica Venâncio, psicóloga
Para a psicóloga esse processo de falta de esclarecimento sobre o crime vivido pelo ente querido pode ser um dificultador do processo de luto para o familiar. Afinal, como o enlutado poderá elaborar sua perda quando ainda há processos em aberto envolvendo aquela morte?
"Situações como a que aconteceu em Brumadinho podem colaborar para um luto traumático e mais difícil de se desenrolar. Nós vivemos como se o outro não fosse morrer, mesmo sabendo que todos nós podemos morrer a qualquer momento. Isso faz com que, diante de uma morte que não se esperava, não possa haver uma despedida prévia, não se possa viver o último momento com aquele ente de forma diferente", comenta Venâncio.
O que, segundo a psicóloga é diferente de situações em que a pessoa adoece e a morte se anuncia antes de se acontecer. Só que, apesar de individual, compartilhar esse sentimento, como coloca Tânia Correa de Toledo Ferraz Alves, médica psiquiatra e Diretora Médica no Instituto de Psiquiatria da USP, pode ser importante para criar uma rede de ajuda em massa.
À medida que o seu sofrimento é reconhecido e autorizado é possível externalizá-lo, compartilhá-lo e recorrer a rede de apoio e/ou assistencial quando necessário.
Mônica Venâncio, psicóloga

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