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Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Ela entrou em remissão após tratamento com células CAR-T feitas no Brasil

Renata Turbiani

Colaboração para VivaBem

07/06/2023 04h00Atualizada em 07/06/2023 17h43

A servidora pública aposentada Ana Cleire Marques Diógenes, 61, moradora de Fortaleza, foi diagnosticada com um linfoma agressivo em 2017. Após dois tratamentos, incluindo um transplante de medula óssea, e duas recidivas da doença, ela se tornou a primeira paciente de um estudo realizado pelo Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

Recidiva é o termo médico usado para quando o câncer (ou qualquer outra doença) volta após algum tempo sem apresentar sintomas.

Neste programa, Ana foi submetida à terapia celular CAR-T, que consiste em coletar e reprogramar geneticamente células do sistema de defesa (linfócitos T) para, depois, reaplicá-las para que reconheçam e combatam o tumor.

E, dois meses depois da infusão, um exame de diagnóstico por imagem indicou a remissão completa da doença. No depoimento a seguir, a aposentada conta um pouco da sua jornada e os desafios que enfrentou:

"Em outubro de 2017, fui diagnosticada com um linfoma na região mesogástrica. Mais ou menos um mês antes, comecei a sentir mal-estar e a apresentar dificuldade de digestão, mas nunca imaginei que seria por causa de um câncer.

Um dia, quando estava no trabalho, tive uma dor lombar muito forte e febre. Fui para o pronto-socorro e fiz ultrassom abdominal total, que já acusou linfonodomegalias (aumento no tamanho dos linfonodos).

Os médicos, então, solicitaram que eu fizesse uma tomografia e aí veio o diagnóstico definitivo. Hoje, fazendo uma retrospectiva, considero que os dias seguintes foram os mais difíceis.

Foi como se tivessem tirado o meu chão. Vivi momentos de desespero, até porque era um universo muito desconhecido para mim.

Passei por uma consulta inicial com a hematologista Paola Torres, em Fortaleza, cidade onde moro. Ela me falou sobre as possibilidades de tratamento e adquiri confiança e muita esperança de que seria curada. Em novembro daquele mesmo ano, comecei a quimioterapia, foram seis sessões. Depois, ainda fiz duas sessões de imunoterapia.

Naquela época, me afastei completamente do trabalho e da vida social. Foram seis meses bem complicados. Tive efeitos colaterais fortes, muito mal-estar e imunidade baixa. Mas enfrentei, tentando sempre me fortalecer para não desanimar.

Ao final do tratamento, a doença tinha sumido. Com essa primeira remissão, voltei às atividades normais: trabalho, lazer e convívio familiar e com amigos.

Ganhei uma nova vida. Foi um momento de muita comemoração e agradecimento. E segui com o acompanhamento periódico, consultas e exames regulares, mas levando uma vida completamente normal.

Primeira recidiva

Dois anos e meio depois, por volta de outubro de 2021, recebi a notícia da primeira recidiva. Foi mais um baque, aquilo mexeu demais comigo. Lembrei de todas as dificuldades que enfrentei na primeira vez e tive muito medo do que viria pela frente.

Dessa vez, passei por um transplante de medula autólogo [feito com a medula óssea do próprio paciente]. Foi uma nova luz que se abriu no meu caminho, mas o tratamento foi muito complicado. Primeiro, fiz três sessões de quimioterapia. Era internada, passava pela sessão, tinha alta e ia para casa. Depois reinternava para a próxima.

Senti ainda mais efeitos colaterais e, entre uma sessão e outra, precisei ser internada duas vezes por causa de desidratação, febre e por não conseguir comer e nem beber. Tive dois episódios de calafrio que nunca vou me esquecer.

Na última internação, para o transplante propriamente dito, fiquei um mês inteiro no hospital. Foi uma rotina bem sofrida. E isso tudo coincidiu com a pandemia de covid-19, o que gerou ainda mais insegurança. Mas recebi conforto e acolhimento dos profissionais de saúde. Eles me deram bastante força para vencer mais essa luta.

O 'dia da pega' [quando a medula volta a funcionar] foi muito especial, um dos mais felizes da minha vida. Tive alta hospitalar, mas fiquei debilitada por algum tempo, em acompanhamento, e depois voltei a ter uma vida completamente normal. Lembro que pensei: 'tudo valeu a pena'.

Quando fiz o transplante, já estava aposentada e passei a conviver mais intensamente com a família e acompanhei com muita felicidade o nascimento da minha primeira neta, a Catarina.

Segui a vida, mas sempre fazendo acompanhamento. E aí aconteceu a nova recidiva, no final de 2022.

Foi outro momento de tristeza e medo. E, junto, passei pela dor de perder a minha mãe. Até pensei em desistir de tudo, mas fiz uma reflexão profunda e vi o quanto a vida é boa, um verdadeiro presente divino.

Decidi, então, com o apoio do meu marido João e das minhas filhas Carla e Lara, que sempre estiveram do meu lado, continuar a batalha em busca da cura do linfoma.

Primeira paciente de novo estudo

Depois da químio, da imunoterapia e do transplante, havia pouca coisa a ser feita. Mas a doutora Beatriz soube de um novo estudo com células CAR-T que estava sendo feito no Einstein, em São Paulo, e me encaminhou.

Ana Cleire com o marido e a neta - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ana Cleire com o marido João e a neta Catarina
Imagem: Arquivo pessoal

A equipe responsável avaliou o meu caso e viu que eu me enquadrava nos critérios e, então, me tornei a primeira paciente do estudo.

No começo fiquei com um pouco de medo, mas os médicos me deram todas as explicações e me passaram muita segurança. Também não foi fácil deixar a minha estrutura de vida, família, casa, cidade, para buscar um novo tratamento. Mas decidi tentar e me mudei para São Paulo com o meu marido.

Inicialmente, fomos acolhidos por minha irmã, cunhado e sobrinhas, que residem há muitos anos na cidade, mas, para ficar mais fácil a logística, alugamos um apartamento em frente ao hospital.

Durante o mês de fevereiro, passei por consultas e fiz vários exames. Neste mesmo mês também foram coletadas as minhas células que seriam reprogramadas geneticamente.

No dia 1º de março, fui internada. Primeiro, fiz algumas sessões de quimioterapia e, no dia 8 de março, recebi a tão esperada infusão com as células modificadas. Fiquei no hospital até 28 de março.

Diferentemente do que aconteceu no transplante de medula, tive bem menos efeitos colaterais dessa vez. O período de hospitalização também foi mais fácil de suportar. E eu tive certeza de que tudo daria certo. E deu.

Dois meses depois da infusão, fiz o exame PET CT e ele indicou a remissão completa da doença. Todo mundo ficou muito emocionado na hora, eu, meu marido, os médicos. Claro que dá medo de que a doença volte, até porque já tive duas notícias ruins anteriormente, mas sou grata por tudo e, agora, tenho perspectiva de uma nova vida.

Na verdade, não só eu, como muitas pessoas que vão fazer este tratamento depois. Foi uma luta grande dos profissionais envolvidos no estudo e esse resultado positivo é uma vitória tanto minha quanto deles.

Ainda estou na fase de acompanhamento, tomando algumas medicações prescritas, fazendo exames e consultas regulares —e será assim por mais um tempo—, mas me sinto muito bem e aos poucos vou voltando às atividades cotidianas, esperando com ansiedade o dia de retornar para Fortaleza, para o meu aconchego, e rever meus familiares e amigos."

Einstein inicia pesquisa clínica com seres humanos

Em junho do ano passado, o Hospital Israelita Albert Einstein recebeu aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para dar início ao primeiro ensaio clínico para o desenvolvimento nacional de produto de terapia gênica à base de células CAR-T.

Essa terapia funciona da seguinte forma:

Primeiro é feita a coleta de linfócitos T (células de defesa do organismo) do próprio paciente através de exame de sangue;

Os linfócitos T, então, são modificados geneticamente em um laboratório especializado. Eles recebem um vetor viral e são transformados em células CAR-T, capazes de reconhecer o tumor e matá-lo;

Essas células ficam um período se proliferando, até que atinjam um número adequado e, por fim, são infusionadas no paciente para se ligarem às células cancerígenas e as destruírem.

As principais vantagens do método são que ele é totalmente personalizado, causa menos efeitos adversos que outros tratamentos, como quimioterapia e radioterapia, exige menos tempo de internação e combate apenas as células do câncer, não atingindo as saudáveis.

No Einstein, desde 2020, uma equipe dedicada trabalha no desenvolvimento de uma tecnologia de CAR-T 100% brasileira, o que significa que o processo de reprogramação das células é feito localmente —em seu laboratório instalado na unidade Morumbi, em São Paulo—, e não no exterior.

"Atualmente, só é permitido no Brasil que o material coletado dos pacientes seja encaminhado para centros de produção nos Estados Unidos para ser reprogramado geneticamente. No nosso estudo clínico, aprovado pela Anvisa no ano passado, estamos testando a segurança de terapia nacional, desenvolvida por nós. Já temos um produto robusto e esperamos que, no futuro, ele esteja disponível no SUS", diz Lucila Nassif Kerbauy, hematologista, especialista em transplante de medula óssea e pesquisadora da instituição de saúde.

Benefícios da adoção de tecnologia nacional

A iniciativa acadêmica do Einstein, realizado no âmbito do Proadi-SUS (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde), em parceria com Ministério da Saúde, tem como foco portadores de linfomas de células B e leucemias linfocíticas agudas ou crônicas B, em casos de reaparecimento da doença ou em situações de resistência ao tratamento padrão.

Kerbauy destaca que a tecnologia nacional traz uma série de benefícios. Os principais são promover o acesso a cada vez mais pessoas e baratear os custos.

"Nos produtos comerciais aprovados no país, só a manufatura das células gira em torno de R$ 2 milhões. Ainda não podemos dizer o quanto este valor diminuirá com a nossa tecnologia, mas com certeza será inferior a isso", aponta.

Outro ponto é que, centralizando todo o processo em um mesmo local, o tratamento acontece de forma mais rápida. Quando o material genético é enviado para fora, leva de 4 a 6 semanas para retornar —e neste intervalo, geralmente, o paciente precisa ser submetido ao chamado tratamento ponte (quimioterapia, radioterapia ou outra estratégia) para evitar a progressão da enfermidade.

"No caso da Ana Cleire, que foi a nossa primeira paciente, conseguimos obter as células em apenas duas semanas. Iniciar o tratamento o mais rápido possível é fundamental para otimizar o tempo de resposta e as chances de cura", observa a médica.

Ela ainda celebra os demais resultados: "A Ana teve poucos efeitos colaterais, e todos foram manejáveis, sem a necessidade de UTI, o que demonstra a segurança da técnica. E, no primeiro PET CT já foi confirmada a remissão completa da doença, o que demonstra a sua eficácia. Estamos muito felizes, animados e motivados para seguir com o estudo".

A servidora pública aposentada deverá ser acompanhada por um período de 15 anos, e, mesmo com o câncer não sendo mais detectado, ela só será considerada curada depois de cinco anos sem sinal da doença.

"Antes disso, não podemos falar em cura. Por enquanto, ela está sendo avaliada semanalmente, para sabermos se as células CAR-T ainda estão presentes no seu organismo e verificarmos as demais condições de saúde. Depois, as consultas e os exames serão mais espaçados, a cada 15 dias, 1 mês, três meses...", explica Kerbauy.

Com o sucesso deste primeiro caso, novos pacientes serão incluídos no estudo clínico do Einstein —a expectativa é que, até o final do ano, mais dez passem pelo tratamento com as células CAR-T produzidas localmente.

Outro trabalho nacional

Além do Einstein, o Instituto Butantan, o Hemocentro de Ribeirão Preto e a USP (Universidade de São Paulo) estão desenvolvendo, juntos, um programa nacional de terapia celular com CAR-T para o tratamento de linfoma não Hodgkin de células B e leucemia linfoide aguda.

O trabalho vem sendo realizado desde 2019 de forma compassiva, ou seja, por decisão médica, como último recurso, para pacientes específicos que enfrentam risco imediato de vida e com cada caso sendo aprovado individualmente pela Anvisa.

Em julho do ano passado, o grupo inaugurou duas unidades de produção das células, batizadas de Nutera (Núcleos de Terapia Avançada), uma na capital paulista e outra em Ribeirão Preto. Em comunicado, as empresas disseram que a expectativa é reduzir o custo em até 10 vezes, facilitando a incorporação ao SUS.

A próxima etapa do programa será o teste clínico —deverá começar nos próximos meses, assim que receber a liberação da Anvisa— para avaliar a segurança da terapia.

Essa primeira fase irá durar um ano e será conduzida nos hospitais da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), da FMRP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto) da USP e da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).