Influenciador Daniel Jogadas convive com a esquizofrenia: 'Quero autonomia'

O influenciador digital Daniel Oliveira Abrahão, 34, conhecido nas redes sociais como Daniel Jogadas, faz sucesso com resenhas esportivas curtas e divertidas embaladas pelo bordão "Boa noite, pessoal". Os vídeos, entretanto, nasceram como hobby durante o tratamento da esquizofrenia.

O carioca descobriu o transtorno aos 23 anos, quando cursava a faculdade de direito. "Eu tava cansado, desanimado, foi em meados de 2010. Lembro que era época de Copa do Mundo até. Eu tranquei a faculdade por um mês, aí fiquei um tempo parado e comecei um tratamento que foi importante para mim", lembra.

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Cuidar da saúde mental não era um terreno desconhecido quando o diagnóstico veio. Daniel fazia terapia desde os 14 anos para lidar com a separação dos pais. Ao descobrir a doença, começou o acompanhamento com psiquiatra, psicanalista e terapeuta ocupacional.

Essa equipe o acompanhou até 2020, quando ele teve uma forte crise durante a pandemia e ficou internado em uma clínica psiquiátrica. "'Difícil' é a palavra que define esse período", diz Marcelo de Araújo Abrahão, pai do influenciador.

Foi ruim, fiquei dois meses e meio [internado], mas foi uma experiência também, só que quando saí, eu comemorei para caramba. Daniel Jogadas

Vídeos como tratamento

Após a saída da clínica, Daniel frequentou uma casa terapêutica, espaços para convivência e reinserção social. Psiquiatras e psicólogos de lá o atendem até hoje, além de Bruno Júlio Alves de Oliveira, seu acompanhante terapêutico (profissional que faz encontros com o paciente para ajudá-lo a organizar questões da vida e a criar independência).

Foi com Bruno que Daniel começou a gravar vídeos em março do ano passado. A ideia era usar a paixão pelo futebol como um hobby —preencher a rotina é importante para a adesão ao tratamento— junto ao interesse pela locução. Fez um curso e começou com as análises sem imaginar o que estava por vir.

"Era para ser uma ocupação, aproveitando uma coisa de que gosto muito que é o futebol. Fui fazendo vídeos, mais sobre o Vasco, que é o meu time, e depois outros assuntos. Aí, fui ganhando seguidores e muitos views nas redes sociais", conta Daniel.

Tá sendo bacana [gravar], porque tenho uma memória muito boa para o futebol, é uma coisa que conheço muito, sempre gostei, desde criança. A Copa de 98 eu lembro bastante, e a de 2002 foi a primeira que acompanhei de perto. Daniel Jogadas

Bruno e Daniel se encontram três ou quatro vezes na semana para fazer atividades de rotina, como caminhar na orla da praia e jogar bola no Leme. A proximidade e o amor deles pelo futebol fortaleceram a amizade.

"Tenho saído bastante, vamos muito à praia, caminhar pelo calçadão, e a gente grava. É bem bacana, a gente vai batendo um papo, conversando. Eu falo as minhas coisas, ele também fala coisas dele", conta Daniel sobre a parceria.

Disciplina ajuda o tratamento

A esquizofrenia não tem cura, mas permite boa qualidade de vida quando o paciente segue bem as terapias e respeita a medicação. Essa conscientização, inclusive, é essencial para evitar preconceitos contra o transtorno.

"Quando bem tratada a esquizofrenia, a pessoa pode ter uma vida normal. Principalmente se tem acompanhamento desde o começo, nos primeiros anos da doença. É preciso encarar a condição, mas saber que pode muito bem levar a vida normal tomando as medicações", explica o psiquiatra Mário Rodrigues Louzã, coordenador do Programa de Esquizofrenia do IPq (Instituto de Psiquiatria) da USP.

Daniel sabe disso e se cuida. Ouvir vozes é o seu principal sintoma, que diz controlar bem com a rotina organizada. Segue à risca o horário das medicações, além de buscar atividades que façam bem. Com o incentivo do pai, quer voltar à ioga, por exemplo, que lhe ensinou técnicas de respiração.

Sou um cara muito comprometido, super me trato. Tomo os medicamentos sempre na hora, não esqueço. E vou me policiando para não esquecer. Daniel Jogadas

Outro diferencial é o suporte social, em especial da família. "Já convivemos muito bem com a situação, e o Daniel leva uma vida normal, a esquizofrenia é um elemento secundário. É mais fácil quando você tem uma teia familiar que dá suporte, carinho, apoio e está junto. E você também tem que se adaptar, eu faço acompanhamento para lidar com essa questão, além das outras da vida", conta Marcelo, seu pai.

Futuro e planos

O influenciador quer continuar crescendo. O que começou de forma espontânea já o surpreendeu muito: são quase 1 milhão de seguidores no TikTok e mais de 300 mil no Twitter e no Instagram. Tanto reconhecimento o deixa feliz e incentiva a sonhar com mais. "Fico lisonjeado, porque considero um trabalho."

Faço vídeo quase diariamente com o meu acompanhante terapêutico e quando estou sozinho eu tento gravar também. Eu penso em ir gravando e ter uma independência financeira, ganhar com isso, ter a minha grana. Aí busco ter a minha autonomia, quero morar sozinho de repente, fazer as minhas tarefas. Daniel Jogadas

Entenda a esquizofrenia

Os sinais do transtorno costumam surgir entre os 15 e 25 anos. No entanto, não se descartam casos antes ou após essa faixa etária.

São sintomas mais comuns:

• Pensamentos incompatíveis com a realidade, como acreditar ser controlado por agentes externos e ser observado por câmeras;
• Alucinações, sobretudo sonoras, que podem descrever o que a pessoa está fazendo e dar ordens a ela, por exemplo;
• Desorganização de pensamentos;
• Mudança do comportamento habitual.

O que causa?

As causas da esquizofrenia ainda são desconhecidas, mas é sabido que quadros agudos da doença estão ligados à desregulação da dopamina —substância ligada à sensação de prazer.

Um dos elementos que conhecemos relativamente bem acontece quando há desregulação no sistema de transmissão. A dopamina existe em excesso, tanto que as medicações a diminuem, então admitimos que tanto alucinações como delírios ocorrem do desiquilíbrio da dopamina no sistema límbico [responsável pelas respostas emocionais]. Mário Rodrigues Louzã, psiquiatra

Ainda não há exames para rastrear a predisposição à doença, mas alguns fatores analisados em estudos aumentam o risco de desenvolvê-la, principalmente quando somados:

• Ter casos na família, sobretudo em parentes de primeiro grau;
• Situações de estresse e adversidades na infância que se somam ao longo do tempo (vulnerabilidades, privação e casos de abuso, por exemplo);
• Uso de qualquer tipo de droga e consumo abusivo de álcool, sobretudo se há casos da doença na família.

Tratamento

As intervenções aliam medicação às abordagens psicossociais, diferentes para cada paciente conforme as suas necessidades. Acompanhamento terapêutico, terapia cognitivo comportamental, Hospital Dia (locais de reabilitação onde o paciente passa apenas parte do dia para ser acompanhado) e terapia ocupacional são algumas das mais populares.

• Como já falado, a adesão aos remédios faz a diferença e melhora a qualidade de vida do paciente ao reduzir os sintomas e protegê-lo contra novos surtos.
• Há alerta aos pacientes que descuidam dos acompanhamentos após apresentar melhoras dos sintomas. "Alguns usam a medicação, apresentam a remissão e acham que não precisam mais tomar remédio, mas têm nova crise", diz Louzã.
• Novos surtos aumentam a persistência dos sintomas e prejudicam o quadro da esquizofrenia, tornando cada vez mais difícil de tratá-la.