Não é como você imagina: entenda a eletroconvulsoterapia, ou 'eletrochoque'
É difícil falar em "eletrochoque" e não se lembrar dos abusos cometidos em manicômios no século passado. Criado nos anos 1930 para tratar condições mentais, o procedimento foi utilizado de forma punitiva, exagerada e sem anestesia. Entretanto, apesar do estigma que pesa até hoje, a eletroconvulsoterapia, ou ECT, é um método com comprovação científica e usado no tratamento de transtorno bipolar, esquizofrenia e depressão grave, em que há risco de suicídio.
"Popularmente conhecida como 'eletrochoque', a eletroconvulsoterapia é um procedimento sério e estudado há décadas", diz o neurocientista Claudio Marcos Teixeira de Queiroz, do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). A questão, segundo ele, é que há um conhecimento escasso do seu mecanismo: a proposta traz resultados, mas a ciência não sabe exatamente como.
Esse tipo de mistério é comum na psiquiatria. Principalmente porque as causas químicas da maioria dos transtornos mentais não são conhecidas, lembra o pesquisador. Em meio a essas lacunas, muita gente passa anos atrás de soluções para a dor psíquica. Uma busca árdua, diga-se de passagem: calcula-se, por exemplo, que 15% das pessoas não respondem aos antidepressivos convencionais. E um dos tratamentos que mais têm se mostrado eficientes frente à depressão refratária ou resistente, é justamente a eletroconvulsoterapia.
Como são as sessões?
O método estimula o cérebro por meio de eletrodos inseridos nas têmporas e causa convulsões. Uma hipótese é a de que isso aumenta a liberação de neurotransmissores reguladores do humor, estabilizando o indivíduo. Estudos feitos em animais também sugerem que as crises convulsivas podem contribuir com a formação de novos neurônios. Entretanto, são pesquisas ainda muito iniciais, de acordo com Queiroz.
Segundo o neurocientista, ver uma sessão de perto pode ser assustador, mas a eletroconvulsoterapia é validada pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) desde 2002, mediante anestesia, avaliação prévia das condições cardiovasculares, respiratórias e neurológicas do paciente, e com aparelhos modernos e registrados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Para iniciar uma sessão, o paciente tem que estar em jejum de, no mínimo, oito horas, explica o psiquiatra Victor Pablo, da Clínica Holiste, de Salvador (BA), que oferece o tratamento. Ele é feito em ambiente hospitalar e a equipe envolvida é integrada por psiquiatra, enfermeiro e anestesista. Logo no início, a pessoa recebe eletrodos nas têmporas. Depois, o anestesista aplica uma substância que deixa o indivíduo inconsciente e ajusta a saturação de oxigênio no sangue. Por fim, aplica o relaxante muscular para evitar contrações.
Enquanto isso, o psiquiatra verifica se o aparelho de ECT está captando a atividade elétrica do cérebro e calibra o equipamento. Em seguida, o anestesista coloca uma proteção bucal na pessoa, porque os músculos da face podem se contrair. É só então que o psiquiatra aperta o botão da máquina de eletroconvulsoterapia para aplicar um choque de três segundos, e acompanha a crise convulsiva em uma tela que indica a atividade cerebral.
A convulsão tem, no mínimo, 20 segundos e a condição cardiovascular é analisada por 20 minutos. Em meia hora, o paciente acorda da anestesia e faz sua primeira refeição do dia sob observação médica. Se estiver se sentindo bem, sem nenhuma náusea, já pode voltar para casa. São necessárias de 12 a 20 sessões como essas para a eficácia, diz Pablo. Elas devem se repetir de duas a três vezes por semana.
Segundo o médico, a ECT pode afetar a memória imediata. Por isso, as lembranças do procedimento tendem a ficar confusas. O psiquiatra alerta também que há riscos para alguns grupos de pessoas: pacientes cardíacos, com alguns tipos de aneurismas ou distúrbios que aumentem a pressão intracraniana, e os sensíveis a anestesias. "Isso mostra a importância de exames complementares e uma visita pré-anestésica", reforça.
Tratamento de rico?
Ao ver tantos detalhes envolvidos na ECT, você já deve imaginar: ela é cara. Cada sessão custa entre R$ 1 mil e R$ 2 mil, explica o psiquiatra Renato Araújo, mestre em neurociências pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e que também oferece o tratamento. Além disso, a eletroconvulsoterapia não integra o rol de procedimentos obrigatórios da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). Assim, poucos convênios médicos dispõem dela.
No SUS (Sistema Único de Saúde), é oferecida em poucos lugares, concentrando-se em hospitais universitários. É o caso do Onofre Lopes, vinculado à UFRN, que passou a contar com o tratamento em outubro deste ano. Todo esse cenário torna a alternativa ainda distante para a maioria da população. A ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) estima que apenas 0,25% dos pacientes com depressão têm acesso a ele.
Como pano de fundo desse vácuo, paira ainda uma série de debates. O primeiro diz respeito aos riscos do método. Por não se entender exatamente como ele funciona, muitos pesquisadores não o encaram como seguro. O cientista Dusan Kolar, do Departamento de Psiquiatria da Queen's University, no Canadá, está entre eles.
Polêmicas sobre eficácia
Em uma revisão publicada em 2017 na revista Evidence-Based Mental Health, o autor refuta a defesa de que a ECT não causa perda cognitiva de longo prazo e critica o modelo das pesquisas que apontaram essa segurança. Do outro lado, pesquisadores argumentam que, apesar de o funcionamento exato do método ainda ser desconhecido, ele é seguro. Endossando esse lado da balança, estão pesquisas que mostram a eficácia do "eletrochoque" em diferentes públicos e contextos de saúde mental.
Por exemplo: um estudo realizado nos Estados Unidos e publicado em 2018 no periódico Jama Psychiatry sugere que, quando se fala em depressão refratária, a ECT tem baixo custo se comparada a remédios e psicoterapia, e deve ser considerada quando duas ou mais linhas de medicamentos ou procedimentos psicoterápicos não funcionam para o paciente. Cabe lembrar que, de qualquer modo, existe um receio quanto à banalização da técnica, hoje indicada para casos bem específicos.
Há uma insegurança entre autoridades de saúde pública quanto à aplicação adequada dos protocolos estabelecidos pelo CFM. A Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), por exemplo, argumenta que o país ainda não dispõe de uma estrutura confiável para regular esse tipo de procedimento, a exemplo de violações de direitos humanos que até hoje ocorrem em muitas clínicas de reabilitação e comunidades terapêuticas pelo país.
"Um governo no qual o presidente da República elogia abertamente torturadores não tem a menor condição de regular a ECT, que serviu durante décadas como forma de tortura", complementa o órgão, em nota para o VivaBem.
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