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Fui convidada a deixar igreja porque nasci sem útero e não podia ter filhos

Márcia com o marido e o filho: ela descobriu que não tinha útero aos 17 anos - Arquivo pessoal
Márcia com o marido e o filho: ela descobriu que não tinha útero aos 17 anos Imagem: Arquivo pessoal

Priscila Carvalho

Colaboração para VivaBem

13/03/2023 04h00

Aos 17 anos, Márcia Marques descobriu que não tinha útero. Cinco anos depois também soube que tinha o canal vaginal mais curto. "Comecei a ter relação sexual, percebi a dificuldade, tinha sangramento e não tinha a liberdade de conversar sobre isso", relembra.

Ainda adolescente, ela demorou para ter uma resposta precisa do que tinha e só depois de muitos exames recebeu o diagnóstico: síndrome de Rokitansky.

Como tinha o sonho de ser mãe, sofreu um baque enorme e começou a se questionar por que foi escolhida.

Era um sentimento de incompletude. Me provocou uma baixa autoestima e foi como se a fertilidade representasse uma inutilidade. Márcia Marques

Por causa disso, precisou trabalhar muito seu psicológico para não ficar ainda mais abalada. Ela sentia como se o seu direito de escolha tivesse sido retirado.

Mesmo tendo a condição, seguiu com os planos de casar e formalizou a união com o namorado que, atualmente, é seu marido. Mesmo sabendo que ela não poderia engravidar da maneira tradicional, isso não foi um impeditivo para que os dois sonhassem em ter um filho.

O apoio do marido na época possibilitou que ela pudesse ter mais confiança em si e recuperasse sua autoestima, mesmo que aos poucos. "Se por um lado é doloroso, por outro, a síndrome nos faz descobrir um amor incondicional. Eles nos enxergam além da nossa função materna. Nos enxergam por ser companheira e pelos nossos valores. O papel do companheiro é muito importante", destaca.

"Foi preciso trabalhar isso na minha cabeça. Nos casamos e ainda permaneci cultivando essa dor. Sempre pensei, mas ao mesmo tempo fui amadurecendo esse luto e trabalhando outras possibilidades de maternidade", relembra. Ela e seu marido pensaram em barriga solidária e adoção.

"Nós queríamos exercer a maternidade e a paternidade. Então não necessariamente no ventre e, sim, formar uma pessoa da vida. Nós choramos o luto e pensamos o que era possível fazer", diz Márcia.

Ela vivenciou no dia a dia o preconceito sofrido por pessoas que invisibilizam mulheres pelo fato de elas não gerarem filhos de maneira biológica.

Fui convidada a me retirar da igreja porque não podia ter filhos. Hoje as mulheres ainda passam por situações de constrangimento. Márcia Marques

Maternidade de coração

Márcia Marques com o marido e o filho - 2 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Com três anos de casados, eles deram entrada no processo de adoção e esperaram quase dois anos para que chegasse ao final. Durante esse período de aprovação do processo de adoção, apareceram diversas propostas de entrega de crianças de forma ilegal e até venda.

Até que, em outubro de 2001, ela e seu esposo receberam uma ligação informando que seu filho estava pronto para ir para casa. "Ele nasceu para a gente com cinco meses de idade. Foi uma emoção muito grande e pareceu como se ele já estivesse esperando pela gente. É como um reencontro", diz.

Quando ele chegou em sua casa o vazio, segundo ela, foi embora. "Me sinto realizada por ser mãe e não precisei necessariamente gestar", reforça.

Desde então, Márcia conta que o processo devolveu toda a realização materna que ela esperava. "São vivências únicas, que é diferente da maternidade biológica, mas é um amor incondicional e que você gera dentro do coração."

Barriga solidária duas vezes

Thaysa com a mãe de barriga solidária, à esquerda, e a cunhada, à direita - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Thaysa com a mãe de barriga solidária, à esquerda; e a cunhada, à direita
Imagem: Arquivo pessoal

A goiana Thaysa Godoy, 43, também foi diagnosticada com a mesma síndrome quando tinha 14 anos. Dois anos antes já havia ido ao ginecologista, mas naquela época o profissional preferiu não contar a ela e à mãe o que a garota tinha.

Mesmo ao receber o diagnóstico, o outro médico deixou bem claro que a condição não era um não para a maternidade. "Ele falou que eu ia poder ter meus filhos biológicos, porém sem gestá-los. Fiquei chorando muito e foi um baque", relembra.

Ao longo dos anos, ela conta que lidava da melhor forma possível e falava abertamente com as amigas e pessoas próximas. Mesmo passando por essa situação, Thaysa foi levando a vida e não sentia a obrigação de ser mãe. Ela decidiu que não queria ter filhos naquele momento ao receber o diagnóstico.

Mesmo assim, sabia da possibilidade de poder encontrar uma barriga solidária. Vale lembrar que o correto é usar esse termo e não mais barriga de aluguel, pois não é permitido ter nenhum interesse financeiro, mas, sim, afetivo.

Foi então que, depois de cinco anos casada e quando já estava com 31 anos, ela pensou na maternidade. O médico disse que sua mãe poderia gerar o bebê. "Ela falou que estava se preparando para gerar o neto quando eu quisesse. Liguei para ela e falei que era a hora", relembra.

Ambas fizeram vários exames e como sua mãe já estava na menopausa, precisou realizar tratamentos e Thays induzir a ovulação. Foram três tentativas. "O resultado deu positivo e me lembro que chorava muito. Era um sonho realizado. Trouxe ela para morar comigo pelos nove meses", diz.

Durante esse período, ela frequentava reuniões que serviam como grupo de apoio para mulheres que estavam tentando engravidar há algum tempo. Os encontros eram com psicólogas e, segundo ela, cada história ali a fortalecia mais.

Passados cinco anos do nascimento da sua primeira filha, o pedido por um irmão era frequente. Como tinham embriões congelados, ela e seu marido pensaram na possibilidade, mas dessa vez sua mãe não poderia gerar seu filho.

Foi então que conversou com a cunhada para que ela seguisse com o processo de gestação. Desde o início, ambas tiveram o apoio dos maridos e seguiram com o processo de fertilização. Foram cinco tentativas.

A cunhada compartilhava as imagens do ultrassom e trocava informações. Thaysa também procurou uma enfermeira especializada em amamentação para começar a produzir leite.

"Não imaginava fazer o processo de novo, pensei até em adoção. E ainda teve o bônus que descobri que meu marido tinha um filho de 19 anos. Realmente não enxerguei com um problema, enxerguei como uma outra benção. De repente, me via com uma família e só tinha a agradecer", ressalta.

Thaysa Godoy com a família - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Mesmo diante desses momentos incríveis, ela conta que passou por situações constrangedoras. Uma vez, ao encontrar com uma conhecida na rua e explicar o processo de barriga solidária que estava fazendo com a cunhada, a mulher disse que ela não iria entregar o bebê a Thaysa: "Sabia que isso não ia acontecer, mas fiquei muito mal e comecei a chorar", diz.

Ela conta que tudo foi um processo de aprendizado e não questiona por que veio com a síndrome. "Enxergo que esses processos me ensinaram muito. Sou muitíssima grata a minha mãe e a minha cunhada e aprendi muito. Essas duas mulheres me ensinaram muito. Deus não me deu o útero, mas me deu algo grandioso, que foram essas vitórias."

O que é a síndrome de Rokitansky?

  • É caracterizada pela ausência ou má formação do canal vaginal e útero. Isso acontece durante o desenvolvimento do feto, por volta da sexta semana embrionária. Não existe uma causa definida para o problema e pode ocorrer até por genética.
  • O grande problema da síndrome é que, muitas vezes, as meninas demoram a descobrir, já que os órgãos genitais externos são normais e só com exames é possível diagnosticá-la. Geralmente, é possível perceber por causa da ausência de menstruação.
  • Os exames mais comuns para identificar a condição são os pélvicos e também os de ultrassom. Também podem ser solicitados exames genéticos para verificar que os cromossomos sexuais são XX.
  • O tratamento é feito de forma multidisciplinar e, desde o início, os médicos mostram as possibilidades de maternidade, tanto por barriga solidária quanto por adoção.
  • A terceira alternativa, que ainda está em fase de estudos, seria o transplante uterino.
  • A linha terapêutica inclui também o uso de dilatadores para o canal vaginal e, em alguns casos, cirurgia. Esta última é indicada quando existe falha na dilatação.
  • A paciente deve receber ainda acompanhamento psicológico, de fisioterapeutas, ginecologistas, além de ser aconselhado a frequentar grupos de apoio.

Fonte: Claudia Takano, coordenadora do ambulatório de más formações genitais da Unifesp, o único do SUS que atende exclusivamente mulheres com a síndrome.