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Terapia do grito: berrar para liberar raiva ou ansiedade é controverso

O Grito, de Edvard Munch, representa bem a terapia estabelecida por Arthur Janov - Reprodução
O Grito, de Edvard Munch, representa bem a terapia estabelecida por Arthur Janov Imagem: Reprodução

Janaína Silva

Colaboração para o VivaBem

18/02/2022 04h00

O que Kanye West, Steve Jobs e John Lennon têm em comum? Todos gritaram a plenos pulmões para liberarem emoções negativas. Chamado de terapia primal, o método foi criado por Arthur Janov, psicólogo pela Universidade da Califórnia. Em uma entrevista à revista Serafina, da Folha de S.Paulo, em 2013, Janov disse que doenças e neuroses são resultados de dores reprimidas na infância e no parto, e a solução seria reviver essa dor —e abraçar o choro e os gritos.

Apesar do sucesso entre os famosos, a terapia primal não chegou aos "meros mortais", talvez pela falta de evidências de que funciona. Segundo Anderson Siqueira Pereira, psicólogo, doutor em psicologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e professor na Wainer Psicologia Cognitiva, gritar realmente libera substâncias que aliviam o estresse, mas em excesso isso pode ser ruim.

"Ao gritar, a amigdala e o sistema límbico, que são os responsáveis pelo processamento das emoções e pela avaliação de perigo, são ativados. O cérebro interpreta a situação como perigosa e libera neurotransmissores semelhantes aos emitidos durante a prática esportiva. Esses neurotransmissores diminuem a sensação ruim que um momento de estresse pode ter gerado", afirma Pereira.

Porém, se o recurso for empregado a todo instante, seu efeito será oposto. O excesso de neurotransmissores pode causar mais estresse, transtornos de ansiedade e depressão. "Berrar provoca também lesões nas pregas vocais", alerta Scheila Farias de Paiva, professora do curso de fonoaudiologia da UFS (Universidade Federal de Sergipe).

É importante lembrar também que o grito em si não é exatamente uma terapia, mas o alívio que algumas pessoas sentem ao berrar pode ser útil se unido a um programa de terapia mais amplo com um psicólogo.

Kim Kardashian e Kanye West - Danny Moloshok - Danny Moloshok
Em uma entrevista ao The New York Times, em 2018, Kanye West disse que sua então esposa Kim Kardashian pediu que Tony Robbins (palestrante motivacional) fizesse uma intervenção. Robbins pediu que Kanye ficasse em uma posição de guerreiro e gritasse, como forma de terapia
Imagem: Danny Moloshok

Por que alguns se sentem melhor depois de gritar?

As crianças começam a gritar por volta dos quatro meses de idade, no momento em que estão descobrindo o próprio corpo e percebendo como seus comportamentos impactam os pais e o ambiente. "A manutenção dessa conduta dependerá tanto do temperamento da criança —ativa, retraída, depressiva ou animada, por exemplo— quanto da reação dos pais, para que ela tenha, no futuro, esse comportamento. Uma reação muito negativa, como xingar, bater ou proibir, fará com que ela reprima essa manifestação no futuro", esclarece Pereira.

Além disso, existem indivíduos que possuem dificuldades no processo de sentir e expressar emoções. Normalmente, eles tiveram suas necessidades emocionais negligenciadas ou punidas, durante a infância, podem ter dificuldade de sentir e expressar raiva, apresentam-se passivos e sentem-se sem controle da própria vida.

Na opinião de Pereira, estimular a pessoa a bradar representa uma forma de ajudá-la a sentir e expressar emoções. A ideia não é fazer com que ela saia berrando com os outros, mas utilizar o ambiente seguro da terapia para ventilar as emoções e perceber no corpo os sinais das emoções.

A dificuldade ou a facilidade em se expressar pode ser, inclusive, um aspecto cultural. Alguns povos são mais expressivos comparados a outros. No caso do Brasil, no qual há a influência de diversas procedências, berrar pode ser visto como normal em algumas famílias e ser recriminado em outras.

O fato de as emoções serem definidas como boas e ruins, culturalmente, acaba revelando o sentimento de culpa em muitas pessoas por manifestá-los. De acordo com Pereira, as emoções são uma forma que o corpo tem de mostrar como o ambiente afeta cada um. Quando algo bom acontece, a emoção sentida é a alegria, que sinalizará a busca dessa situação novamente. Do outro lado, quando se perde alguém importante, a tristeza é a forma como o corpo mostra que algo importante se perdeu ou está em risco.

"O grito ajuda a colocar para fora as sensações e colabora para que os outros percebam os sentimentos. A grande questão é que nem toda expressão emocional é adequada em todos os ambientes. Talvez emitir um berro em casa ao bater o dedinho no canto do sofá possa valer para lidar com frustração e dor, mas no ambiente de trabalho esse tipo de expressão emocional é inadequado. Isso não torna a emoção sentida errada. Avaliar o contexto é importante para selecionar a melhor forma de expressão para lidar com a emoção e resolver problemas sociais, e não causá-los", orienta Pereira.

John Lennon e Yoko Ono não muito antes da morte dele - GETTY IMAGES - GETTY IMAGES
O álbum "John Lennon/Plastic Ono Band", a estreia solo do ex-Beatle, de 1970, foi escrito durante os cinco meses em que ele se tratou com Janov
Imagem: GETTY IMAGES

Quando o grito é ruim

Expressar-se pelo grito é uma forma de comunicação mais ativa, com o intuito de chamar a atenção, mostrar indignação, surpresa, dor e, até mesmo, alertar outras pessoas em relação ao perigo.

Mas crescer em ambientes com muitos gritos e comunicação violenta acarreta diversos problemas às crianças, visto que são percebidos pelo cérebro como sinais de ameaça e de danos físicos. Os relacionamentos amorosos também tendem a apresentar gritarias como manifestações maléficas.

A dica do especialista para as situações em que as pessoas sentem a necessidade de gritar para extravasar é usar um travesseiro para abafar o som. Sair de perto para se acalmar também funciona.

Em contrapartida, há casos nos quais o vociferar é a única forma que a pessoa possui para lidar com algumas emoções e isso, também, desencadeia problemas, como brigas conjugais ou dificuldades no emprego.

Terapia além do grito

Para quem grita muito ou para quem não consegue se expressar existe uma abordagem chamada de treino de habilidades sociais, que consiste em auxiliar o indivíduo a encontrar formas adequadas de expressão de pensamentos e emoções. "Essa abordagem é bastante usada para casos de transtorno de ansiedade social e também para auxiliar pessoas que utilizam um perfil de comunicação violenta", fala Pereira.

Para ele, o mais importante é conseguir entender os sentimentos por trás da necessidade de gritar. "Cada emoção está ligada a uma necessidade diferente, logo, ao estar triste, por exemplo, talvez gritar não seja a melhor forma de lidar com esse sentimento, mas sim buscar alguém confiável para conversar."

Outro tratamento disponível é a bioenergética, psicoterapia corporal com uma abordagem que combina princípios da psicanálise com trabalho corporal físico, emocional e energético. Melyssa Galdino, professora do departamento de psicologia da UFPB (Universidade Federal da Paraíba), explica que o objetivo é resgatar a natureza primária, a expressão livre e espontânea do ser, colaborando para aliviar tensões musculares crônicas, expandir a capacidade para a intimidade, saúde e sexualidade, além de permitir lidar melhor com as dificuldades existentes e aprender novos caminhos, e para isso ela utiliza exercícios corporais para minimizar as couraças e recuperar a vitalidade.

"Dentre eles, estão técnicas reichianas de respiração e algumas relacionadas à liberação energética, muscular e emocional, tais como exercícios que mobilizam o choro, gritos, suspiros, tremores e o relaxamento, favorecendo a harmonização e integração corpo e mente."

Fontes: Anderson Siqueira Pereira, psicólogo, doutor em psicologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e professor na Wainer Psicologia Cognitiva; Melyssa Galdino, professora do departamento de psicologia da UFPB (Universidade Federal da Paraíba); Scheila Farias de Paiva, fonoaudióloga, audiologista e reabilitadora de audição e da linguagem infantil e professora do curso de fonoaudiologia da UFS (Universidade Federal de Sergipe).