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Como elaborar o luto após um aborto espontâneo ou a perda de um bebê?

Milena teve aborto espontâneo em 2017; hoje em dia, tem dois filhos - Arquivo pessoal
Milena teve aborto espontâneo em 2017; hoje em dia, tem dois filhos Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Vidal

Do VivaBem, em São Paulo

10/11/2021 04h00

Resumo da notícia

  • Muitas vezes, o luto após um aborto espontâneo ou a perda de um bebê não é validado
  • Mas o primeiro passo é reconhecê-lo e, a partir disso, permitir-se vivenciar cada fase do processo
  • É possível elaborar esse luto e aprender a conviver com o sentimento ao longo da vida

Para alguns casais, a chegada de um bebê é marcada de expectativas. Durante a gestação, os pais começam a fazer planos: escolhem um nome, montam o quarto e só pensam no futuro a partir desta novidade. Mas o momento também pode não ter o desfecho esperado. Algumas pessoas sofrem aborto espontâneo ou, então, o bebê nasce morto após complicações.

Nas duas situações, há dor, perda e luto. Por mais que "perda" e "luto" sejam coisas diferentes, o cérebro as interpreta de forma parecida. Para qualquer "objeto de amor" que é perdido —um emprego, um pet ou uma pessoa— haverá sofrimento. Até porque, muitas vezes, o bebê passa a existir muito antes de ser concebido ou de nascer.

"O bebê existe nos sonhos e nos planejamentos de vida. Ao longo da gestação, é comum que ele passe a existir no discurso dos pais, sendo nomeado, por exemplo. Ele já existe no imaginário e no simbólico dos pais", explica Monica Venâncio, psicóloga do Hospital Universitário da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e responsável pelo ambulatório do luto da instituição.

Segundo ela, é por essa existência que é necessário e válido que o luto diante da perda desse bebê idealizado possa ser acolhido, reconhecido e que encontre condições de ser elaborado.

Luto não legitimado

Por ser algo delicado, esse tipo de luto pode não ser bem identificado como tal, o que pode trazer dificuldade aos pais neste momento.

"A sociedade tem essa dificuldade de se enlutar, ficar triste ou ritualizar as despedidas. Cobra-se muito o 'seguir em frente', a 'superação', inclusive quando falamos da finitude", explica Gabriela Casellato, doutora em psicologia clínica e fundadora do 4 Estações Instituto de Psicologia.

Especializada em perdas e lutos, Casellato escreveu um livro no qual aborda a questão, o "Luto Por Perdas Não Legitimadas na Atualidade" (Summus Editorial). Na obra, ela cita o luto que pessoas enfrentam ao não conseguir conceber um bebê, principalmente de forma definitiva. Mas o mesmo vale para quem sofre de um aborto espontâneo ou quem perde um bebê. "Isso também é um luto", diz.

De acordo com ela, há uma tendência em banalizar a experiência da pessoa, já que aquele ser humano, por exemplo, não existiu, socialmente falando. "Portanto, a dor da perda da vida tende a ser desconsiderada até pelos pais, que sofrem, mas não reconhecem e até falam 'mas tem coisa pior'".

Cada luto é vivenciado de uma forma

Milena Andréa Stevanatto Carnielli, 38, sofreu um aborto espontâneo no dia 24 abril de 2017. Ela estava de 11 semanas (dois meses e meio) quando notou um fluxo intenso de sangue. Após sentir fortes dores, foi ao hospital, onde descobriu que tinha perdido o filho.

Milena Andréa Stevanatto Carnielli - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Milena Andréa Stevanatto Carnielli com os dois filhos
Imagem: Arquivo pessoal

"Foi muito difícil, porque era uma gravidez esperada, então, na verdade, foi uma dor mais 'psicológica'. A chave, de que eu era mãe, já tinha virado", lembra a técnica em prótese dentária, que vive em Campinas (SP).

Hoje, Milena conta que esse primeiro filho trouxe diversos ensinamentos na vida do casal. "Eles nos prepararam para o segundo e o terceiro filho, que vieram na sequência", diz. "Meu processo de luto foi feito com ajuda da família e muito ao lado do meu marido. Aos poucos, fomos superando essa perda", diz. Atualmente, Thales e Ravi, os filhos do casal, têm 3 anos e 6 meses, respectivamente.

Alguns casais podem levar mais tempo para assimilar o ocorrido, até porque o processo de luto é muito individual e não linear. Há tristeza, raiva, negação, até que, um dia, tudo aquilo pode ser ressignificado.

Kawany Ferreira - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Kawany ao lado do marido Everson e da filha Maria
Imagem: Arquivo pessoal

A dona de casa Kawany Ferreira, 30, engravidou em fevereiro de 2020. Quando estava com 41 semanas de gestação (pouco mais de 10 meses), foi ao médico, que fez os exames e disse que estava tudo bem. Mas o bebê morreu algumas horas antes do parto, em novembro de 2020, após insuficiência respiratória.

"O processo de luto está sendo muito difícil. Estamos tomando remédio para depressão e síndrome do pânico", diz Kawany, que mora em Palmeira (PR). O casal, que já tem uma filha de 7 anos, Maria, segue com planos de tentar engravidar novamente.

Como elaborar o luto? Há formas de "superar"?

De acordo com as especialistas, o verbo "superar" não é o mais indicado, mas sim "conviver" ou, então, "elaborar" esse luto. "Quando eu ouço que o luto precisa ser 'superado' tenho a impressão de que é necessário esquecer a perda e seguir adiante. O que na maioria das vezes não é possível. Trata-se de uma exigência quase impossível de ser cumprida", afirma a psicóloga da UFBA.

De acordo com ela, é necessário entender que o luto é um processo que envolve fatores inconscientes. "É preciso viver o luto para, adiante, conviver com a ausência do bebê perdido, por exemplo", diz.

O primeiro passo é se permitir ficar triste, com raiva ou qualquer outra sensação que apareça. É entender que isso faz parte do processo. "Ter consciência disso já é libertador", diz Tania Alves, psiquiatra e coordenadora do Ambulatório de Luto do IPq (Instituto de Psiquiatria) do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

"Assim como mudamos quando nos apaixonamos, é esperado ficar assim neste momento de luto. Você está agindo dentro das expectativas, não é nenhum tipo de 'enlouquecimento''', explica Alves.

Kawany Ferreira ao lado do marido Everson - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Kawany e Everson tentam engravidar novamente
Imagem: Arquivo pessoal

Até porque a perda de um bebê é também a perda, em potencial, "daquilo que poderia ser e nunca será possível ter acesso". "Por isso, os pais vão precisar desvendar o que se perdeu com a morte daquele bebê. E isso é muito singular", afirma Venâncio.

Há formas de vivenciar esse luto de uma forma saudável, com algumas estratégias. Uma delas é criar rituais para esse momento. Às vezes, dependendo do casal, um velório para o bebê pode ajudar no processo. É possível ainda escrever uma carta para ele ou fazer um diário sobre o ocorrido.

Uma outra opção é entrar em grupos de pessoas que passaram pelo mesmo. A sensação de pertencimento, a partir de relatos semelhantes, pode auxiliar na elaboração do luto.

Mas quando os sintomas se intensificam ao longo do tempo, trazendo prejuízos na vida profissional, pessoal, além de negligências com a saúde, é preciso procurar ajuda especializada.

"O sofrimento humano não pode ser lido sempre como uma patologia. Tristeza, medos, angústias fazem parte da vida humana. Por isso, é muito importante o diagnóstico diferencial entre luto e depressão. Profissionais especializados, como psicólogos e psiquiatras, podem fazer esse diagnóstico diferencial e avaliar a ajuda necessária em cada situação", explica a psicóloga da UFBA.

Quando tentar de novo?

Em algum momento após a perda do bebê ou do feto, os pais podem (ou não) optar por tentar engravidar novamente. Em alguns casos, segundo a psiquiatra do IPq, essa decisão pode vir com o sentimento de "traição" com o bebê perdido.

"Mas entre o medo de tentar ou não, o paciente vai ter que escolher. Se ele não tentar, está abrindo mão de uma nova possibilidade de constituir a família. Se ele tentar, pode correr o risco de passar pelo mesmo de novo. Mas a vida é assim, ela é arriscada. Faz parte", diz.

O "tentar de novo" só é perigoso quando aparece com o objetivo de deslocar a dor, como um curativo na ferida causada pela perda do bebê. "Quando o casal consegue entrar em contato com a dor e consegue renovar os projetos, inclusive o de ter um novo filho, isso é um movimento saudável no sentido de seguir a vida e adaptar-se", explica Casellato.

Simone Ferreira da Silva - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Simone, ao lado de André, tenta engravidar novamente
Imagem: Arquivo pessoal

A babá Simone Ferreira da Silva, 43, está neste caminho para tentar engravidar novamente após perder Noah, com quase sete meses de gestação, em 2019. "Foi o pior dia da minha vida. Não tive coragem de ver meu filho na hora. Estava muito fraca pelo parto, então o levaram logo para fazer os procedimentos do enterro", lembra.

Simone, que é de Porto Velho (RO), contou com o apoio das amigas, além de ler histórias em grupos do Facebook. Na época, ela e o namorado, André, se separaram —o que costuma ocorrer com muitos casais.

Depois de seis meses, os dois reataram e, hoje, tentam engravidar novamente. "Nunca vamos esquecer do nosso anjo Noah. Estamos tentando um outro filho, porém estou com 43 anos, está cada vez mais arriscado. Mas, para Deus, nada é impossível e tenho fé que em breve terei meu positivo".