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Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Esquecimento motivado: é possível esquecer algo 'de propósito'?

Jim Carrey e Kate Winslet em cena de "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças" (2004) - Divulgação
Jim Carrey e Kate Winslet em cena de "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças" (2004) Imagem: Divulgação

Isabella Abreu

Colaboração para o VivaBem

21/08/2021 04h00

Já pensou em poder apagar algumas memórias desagradáveis de seu cérebro, assim como no filme "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças"? Na obra, Clementine (Kate Winslet) decide passar por um procedimento radical para apagar suas lembranças de Joel (Jim Carrey). A história não passa de ficção, mas será que na vida real é possível esquecer algo que nos incomoda?

Michael Anderson, professor de neurociência cognitiva da Universidade de Cambridge, diz que esculpimos as nossas memórias e que podemos esquecer certas coisas com mais intencionalidade, o que ele chama de "esquecimento motivado".

De acordo com Ricardo Sachser, psicólogo cognitivo-comportamental e neurocientista especialista em esquecimento pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), nossas memórias, mesmo as emocionalmente marcantes, não são fixadas no cérebro instantaneamente após a aprendizagem; para que elas perdurem ao longo da vida, são necessárias modificações na estrutura dos neurônios de regiões-alvo (como hipocampo, amígdala basolateral, giro do cíngulo e córtex pré-frontal). "Em resumo, os neurônios mudam sua capacidade funcional em resposta à aprendizagem emocional —na denominada plasticidade sináptica — e esse processo é dependente fundamentalmente de tempo e de alterações na expressão gênica das células", afirma.

Ele explica que a consolidação da memória, portanto, requer a síntese de novas proteínas dentro de uma janela temporal de aproximadamente seis horas, o que nos revela um período crítico de maleabilidade, sendo possível modular, então, o conteúdo a ser armazenado. Assim sendo, podemos nitidamente inibir a formação da memória (ou induzir seu esquecimento) com o emprego de fármacos ou de estratégias cognitivo-comportamentais dentro desta janela de tempo. O detalhe, conta Sachser, é que em condições psicopatológicas, boa parte dos pacientes busca auxílio após anos ou décadas da experiência original. Afinal, seria possível induzir o esquecimento de memórias traumáticas anos após sua consolidação?

Cena de "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças" (2004) - Divulgação - Divulgação
No filme, a personagem tenta esquecer o ex, mas na vida real medicamentos testados para algo do tipo são voltados para quem tem transtornos psiquiátricos
Imagem: Divulgação

Dá para esquecer memórias "antigas"?

Em 2000, o neurocientista Karim Nader, da McGill University, no Canadá, demonstrou experimentalmente que após a consolidação de memórias traumáticas, uma nova janela temporal de seis horas se "abre" mediante sua apropriada evocação. Esse processo de reestabilização após a evocação torna os neurônios desta memória "instáveis", ou seja, susceptíveis a alterações no fenômeno descrito por reconsolidação da memória.

Nesse cenário, se a memória emocional for evocada obedecendo parâmetros metodológicos específicos, seus neurônios se tornam novamente lábeis, permitindo que seu conteúdo original seja atualizado ou até mesmo esquecido. "A reconsolidação da memória tem sido utilizada como importante ferramenta no tratamento de fobias específicas (como aracnofobia, que é o medo de aranhas), dependência química e transtorno de estresse pós-traumático. Uma das formas de induzir o esquecimento em condições traumáticas é utilizando medicamentos ?-bloqueadores após a evocação da memória em protocolos médicos e psicológicos padronizados", afirma Sachser.

Já o estudo de Michael Anderson, de Cambridge, demonstrou, em voluntários saudáveis, que é possível induzir o esquecimento de certos tipos de memória, e que há uma base biológica que regula esse processo. Nesse caso, testes cognitivos/neuropsicológicos são utilizados durante técnicas avançadas de imageamento cerebral, por meio de uma ressonância magnética funcional para monitorar em tempo real a atividade metabólica de regiões específicas do encéfalo.

Utilizando o teste "Think/No-Think" (Pense/Não-Pense), os participantes eram instruídos a lembrar e a não lembrar certas listas de palavras com seus respectivos significados. Durante a sessão, o fato de os voluntários possuírem uma capacidade reduzida para lembrar itens que eles deveriam esquecer apoia fortemente para a existência de um mecanismo de controle inibitório voluntário, ou seja, a ideia de que temos a capacidade de suprimir memórias indesejadas.

Sachser conta que há um "custo energético cerebral" para evitarmos trazer à consciência detalhes de uma memória particular de experiências desagradáveis (decorrente de um assalto, abuso físico, acidente de trânsito, luto etc.). "Observa-se, portanto, que somos capazes de guiar nossa conduta na medida que optamos pela "escolha" dos mais adequados pensamentos para melhor nos adaptarmos às situações de momento. O esquecimento é vital para que possamos guiar nosso comportamento, e esse 'controle inibitório' é parte fundamental do funcionamento cognitivo", diz.

Para o especialista, uma limitação importante dos estudos de Anderson e de outros grupos de pesquisa que trabalham com o modelo "retrieval-induced forgetting" (evocação que induz o esquecimento) refere-se aos participantes recrutados para os experimentos, já que se tratam de voluntários adultos sem histórico de doenças neuropsiquiátricas. "São estudos que visam elucidar os mecanismos de determinadas fases da memória, e que certamente nos auxiliam na compreensão do funcionamento mental superior. Estudos futuros utilizando essas metodologias em populações patológicas contribuirão para o desenvolvimento de novos tratamentos ou para refinamento dos tratamentos atualmente disponíveis em psicofarmacologia e neuropsiquiatria", ressalta. Ou seja, esquecer o ex, como no filme Michel Gondry, não é o foco dos cientistas.

O que é a memória e como ela funciona

Definida como a capacidade do cérebro de adquirir, armazenar, conservar e evocar informações, sem ela é impossível realizar atividades diárias, estabelecer relacionamentos ou aprender e progredir em nossas vidas. "Ou seja, as memórias são fruto das nossas experiências", diz Cristiane Furini, pesquisadora do Laboratório de Cognição e Neurobiologia da Memória do InsCer (Instituto do Cérebro) da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).

A pesquisadora explica que a fase de aquisição das memórias é também chamada de aprendizado. Por meio da exposição a estímulos, nossos sentidos captam informações, habilidades, experiências, imagens, diálogos, movimentos, cheiros. Isso acontece devido a modificações nos disparos químicos entre os neurônios, as células cerebrais responsáveis pelo processamento de memórias. No nosso cérebro, há cerca de 86 bilhões destas células. Os neurônios têm prolongamentos por meio dos quais estabelecem redes, comunicando-se uns com os outros.

Após o aprendizado, a informação adquirida é então armazenada em um traço de memória estável e duradouro, através de um processo denominado de consolidação e, uma vez armazenadas, elas podem ser recuperadas. Esse processo de recuperação é também denominado de evocação, lembrança ou recordação, e comprova que o aprendizado realmente deu origem a uma memória.

Além disso, há diferentes tipos de memórias, como explica Tarso Adoni, neurologista do Hospital Sírio-Libanês:

  • Memória de trabalho: é aquela que usamos para, por exemplo, repetirmos (em voz alta ou mentalmente) um número de telefone que nos foi recentemente informado e que, imediatamente após o termos digitado no teclado, esquecemos dele. A memória de trabalho depende das regiões mais anteriores do cérebro, chamadas em conjunto de "circuitaria córtico-subcortical frontal".
  • Memória de curto prazo: é a memória relacionada a fatos recém-aprendidos e situações recém-vividas. Por exemplo, quando me apresentam para alguma pessoa e dizem o nome dela, a depender da relevância daquele nome (se é meu chefe ou meu futuro amor), a informação será, inicialmente, armazenada em uma área específica do cérebro chamada hipocampo, localizada no lobo temporal. Decorridos três a seis meses, em média, aquela nova informação relevante (nome do chefe ou do presidente que acabou de ser eleito, por exemplo) sairá do hipocampo e então será consolidada em áreas dispersas da substância cinzenta dos vários lobos do cérebro (frontal, temporal, parietal ou occipital). Assim, ela se converterá em memória de longo prazo.
  • Memória de longo prazo: é aquele tipo de memória que se relaciona a eventos da nossa vida (chamada também de memória episódica). Onde passamos as férias do ano passado, o endereço de casa, o episódio em que quebrou a perna aos 14 anos andando de bicicleta ou que se relaciona a fatos conhecidos (chamada também de memória semântica), tais como a data do descobrimento do Brasil, por exemplo.